segunda-feira, 8 de maio de 2023

A Chegada

Edmond Dantès
 
Capítulo 1
Marselha — A Chegada
por Alexandre Dumas
“ A 24 de fevereiro de 1815, o posto de vigia de Notre‑Dame de la Garde avistou o Pharaon, navio de três mastros procedente de Esmirna, Trieste e Nápoles. Como de costume, saiu imediatamente um piloto costeiro que, contornando o Castelo de If, subiu a bordo da embarcação entre o cabo Morgiou e a ilha de Riou. Também como era costume, rapidamente a plataforma do Forte de Saint‑ Jean se apinhou de curiosos; em Marselha, a entrada de um navio no porto é sempre um acontecimento, especialmente se esse navio, como era o caso do Pharaon, tiver sido construído, equipado e estivado nos estaleiros da velha Fócida1 e for pertença de um armador da cidade. O navio aproximou‑se e passou em segurança o estreito aberto por alguma erupção vulcânica entre as ilhas de Calasareigne e Jaros, dobrou Pomègue e acercou‑se do porto com as velas de sobre, a bujarrona e a vela de ré, mas com tal vagar e serenidade que os curiosos, com aquele instinto que pressente o mal, perguntavam uns aos outros que desgraça poderia ter acontecido a bordo. Porém, os que tinham experiência de navegação viam perfeitamente que, se tivesse ocorrido algum acidente, não teria sido com o navio, pois este aproximava‑se com todos os indícios de ser habilmente manobrado, com o ferro pelos cabelos e as espias do pau de bujarrona já aliviadas; de pé, ao lado do piloto que dirigia o Pharaon para a estreita entrada do porto de Marselha, estava um jovem, que, com afã e o olhar atento, observava todos os movimentos do navio e repetia cada instrução do piloto. A vaga inquietação que reinava entre os espectadores afectara tanto uma das pessoas que se encontravam na esplanada de Saint‑Jean, que esta não ficou a aguardar a chegada da embarcação ao porto e, saltando para um pequeno esquife, pediu que o puxassem para junto do costado do Pharaon, que alcançou quando este rodou para entrar na doca da Réserve. Quando o jovem marinheiro viu esta pessoa aproximar‑se, deixou o seu posto ao lado do piloto, e, de chapéu na mão, debruçou‑se sobre a amurada do navio. Era um jovem belo, alto e esguio de uns dezoito a vinte anos, de olhos negros e cabelo escuro da cor da asa de corvo; toda a sua aparência revelava a calma e a resolução características dos homens habituados desde o berço a enfrentar o perigo.
— Ah, é o senhor, Dantès? — gritou o homem do esquife. — O que se passa? E porque vêm todos com um ar de tristeza a bordo?
— Um grande infortúnio, senhor Morrel! — respondeu o jovem. — Um grande infortúnio, especialmente para mim. Perdemos o nosso bravo capitão Leclère ao largo de Civitavecchia.
 — E a carga? — inquiriu o armador, ansioso.
 — Está toda a salvo, senhor Morrel; penso que ficará satisfeito nesse aspeto. Mas o pobre capitão Leclère…
— O que lhe aconteceu? — perguntou o armador, com ar visivelmente aliviado. — O que aconteceu ao bravo capitão?
— Morreu.
— Caiu ao mar?
— Não, senhor, morreu de febre cerebral numa terrível agonia. — Depois, voltando‑se para a tripulação, disse — Todos aos seus postos para ferrar o pano! A tripulação obedeceu e, de imediato, os oito ou dez marinheiros que a compunham correram para os respetivos postos na carregadeira e adriça da vela de ré, escotas e adriças da gávea, regadeira da bujarrona, e nos estingues e brióis da gávea. Depois de dar uma olhadela para ver se as suas ordens tinham sido corretamente acatadas, o jovem marinheiro voltou‑se novamente para o armador.
— E como ocorreu essa desgraça? — perguntou este último, retomando a conversa interrompida.
 — Ai de mim, senhor, da maneira mais inesperada. Depois de uma longa conversa com o capitão do porto, o capitão Leclère deixou Nápoles numa grande agitação. Vinte e quatro horas depois foi atacado por uma febre e morreu passados três dias. Fizemos‑lhe o serviço fúnebre habitual, e descansa em paz, embrulhado na sua maca com um peso de trinta e seis libras à cabeça e outro aos pés, ao largo da ilha de El Giglio. Trazemos para a viúva a sua espada e a cruz de honra. Valeu bem a pena — acrescentou o jovem com um sorriso melancólico — andar a combater os ingleses durante dez anos, para depois morrer na cama, como qualquer outra pessoa.
— Que infelicidade! Mas sabe, Edmond — respondeu o armador, que parecia cada vez mais aliviado —, somos todos mortais, e os velhos têm de dar lugar aos novos. Se não, não haveria promoções; e visto que me garante que a carga…
— Está toda a salvo, senhor Morrel, acredite; e aconselho‑o a não aceitar menos de vinte e cinco mil francos de lucro por esta viagem. Depois, quando iam a passar a torre redonda, o jovem gritou:
 — Preparem‑se para baixar a gávea e a bujarrona; carregar a vela de ré! A ordem foi executada quase tão depressa como num navio de guerra.
— Aliviar e carregar! A esta última ordem, todas as velas foram baixadas e o navio avançou quase impercetivelmente, apenas pelo seu impulso.
— Se quiser subir agora, senhor Morrel — disse Dantès, dando‑se conta da impaciência do armador—, aqui tem o guarda‑livros, o senhor Danglars, que vem a sair da cabina e lhe dará todos os pormenores. Eu tenho de ir vigiar a ancoragem e pôr o navio de luto.
O armador não esperou que o convidassem duas vezes. Agarrou numa corda que Dantès lhe lançou e, com uma agilidade mais própria de um marinheiro, subiu o costado do navio, enquanto o jovem, voltando ao seu posto de imediato, deixou que a conversa prosseguisse com aquele que tinha sido apresentado como Danglars e, saindo da sua cabina, se dirigia agora ao armador. O recém‑chegado era um homem de uns vinte e cinco ou vinte e seis anos, de semblante carregado, obsequioso para com os superiores, insolente para com os subordinados; isto, aliado à sua posição de guarda‑livros, que é sempre detestável para os marinheiros, levava a que fosse tão odiado pela tripulação quanto Edmond Dantès era estimado.
— Bom, senhor Morrel — disse Danglars —, já sabe da desgraça, não sabe?
— Sim, sim. Pobre capitão Leclère! Era um homem corajoso e honesto.
— E principalmente um marinheiro de primeira, envelhecido entre o céu e a água, como convinha a um homem encarregado dos interesses de uma casa da importância da Morrel & Filho — respondeu Danglars.
— Mas — retorquiu o armador, olhando de relance Dantès, que se ocupava da ancoragem do navio — parece‑me a mim que não é necessário um marinheiro ser tão velho como diz, Danglars, para perceber do seu mister, pois o nosso amigo Edmond parece dominá‑lo perfeitamente e não nece sitar de instruções de ninguém.
— Sim — respondeu Danglars, lançando a Edmond um olhar faiscante de ódio. — Sim, ele é jovem e a juventude é invariavelmente autoconfiante. Mas o capitão acabava de soltar o último suspiro e já ele assumia o comando sem consultar ninguém; além disso, fez‑nos perder um dia e meio na ilha de Elba, em vez de se dirigir diretamente a Marselha.
— Quanto ao facto de ter assumido o comando do navio — respondeu Morrel —, era o seu dever como imediato; quanto a perder um dia e meio na ilha de Elba, agiu mal, a menos que o navio necessitasse de reparação.
— O navio estava em tão boas condições como eu, e como espero que o senhor esteja, senhor Morrel; esse dia e meio foi perdido por mero capricho, pelo prazer de ir a terra, mais nada.
— Dantès — disse o armador, virando‑se para o jovem —, chegue aqui!
— Só um momento, senhor — respondeu Dantès —, e já irei ter consigo. Depois, gritando para a tripulação, disse: — Larguem‑na! A âncora foi imediatamente largada e a corrente deslizou com estrépito. Apesar da presença do piloto, Dantès manteve‑se no seu posto até se concluir a manobra e depois acrescentou: — Ponham as bandeiras a meia haste e cruzem as vergas!
 — Como vê — disse Danglars —, ele já se está a pôr na pele de capitão, garanto‑lhe.
— E, na verdade, é o que ele é — disse o armador.
— Falta a sua autorização e a do seu sócio, senhor Morrel.
— E porque não haveria de a ter? — perguntou o armador. — É certo que é jovem, mas parece‑me um marinheiro consumado, e perfeitamente experiente.
O rosto de Danglars ensombrou‑se.
— As minhas desculpas, senhor Morrel — disse Dantès, aproximando‑ ‑se. — O navio já está ancorado e estou ao seu dispor. Chamou‑me, não foi? Danglars deu um passo atrás.
— Desejo saber por que razão fez uma paragem na ilha de Elba.
 — Não sei, senhor; foi para cumprir as últimas instruções do capitão Leclère, que, à hora da morte, me entregou uma encomenda para o grão‑marechal Bertrand.
— Então, esteve com ele, Edmond? — Com quem? — Com o grão‑marechal.
- -Sim.
Morrel olhou em redor e puxou Dantès à parte. — E como está o imperador? — perguntou ele vivamente.
— Muito bem, tanto quanto me foi dado ver.
 — Então, viu o imperador?
— Entrou nos aposentos do marechal quando eu lá estava.
— E falou com ele?
— Foi ele que falou comigo, senhor — respondeu Dantès com um so riso.
 — E o que lhe disse ele?
— Fez‑me perguntas sobre o navio, o momento em que saíra de Marselha, o rumo que tomara e que carga transportava. Creio que, se não estivesse carregado e fosse meu, ele o teria comprado. Mas eu disse‑lhe que era apenas imediato e que o navio pertencia à firma Morrel & Filho. «Ah, sim», disse ele, «conheço‑os. Os Morrels têm passado o negócio de armadores de pais para filhos; e houve um Morrel que prestou serviço no mesmo regimento que eu quando estive de guarnição em Valence.»
— Por Deus, é verdade! — exclamou o armador, encantado. — Foi o meu tio Policar Morrel, mais tarde promovido a capitão. Dantès, há de transmitir ao meu tio que o imperador se lembrou dele; verá que os olhos do velho soldado se encherão de lágrimas. Bom, bom — prosseguiu, batendo levemente no ombro de Edmond —, fez muito bem, Dantès, em seguir as instruções do capitão Leclère de aportar em Elba, embora, se se soubesse que entregou uma encomenda ao marechal e conversou com o imperador, isso lhe pudesse trazer problemas.
— Como poderia isso trazer‑me problemas, senhor? — perguntou Dantès. — Eu nem sei o que transportei; e o imperador só me fez as perguntas que faria a outro qualquer. Mas, perdoe‑me, estão a acostar ao navio os delegados de saúde e os inspetores da alfândega. O senhor dá‑me licença?
— Claro, claro, meu caro Dantès. O jovem afastou‑se e, quando se afastou, Danglars aproximou‑se, dizendo:
— Então, ele deu‑lhe razões satisfatórias para ter aportado em Porto Ferrajo?
— Sim, bastante satisfatórias, meu caro Danglars.
— Tanto melhor — disse o guarda‑livros —, pois é desagradável pensar que um camarada faltou ao seu dever.
— Dantès cumpriu o seu — retorquiu o armador —, e não há motivo para o censurar. Foi o capitão Leclère que ordenou essa escala.
— Por falar no capitão Leclère, o Dantès não lhe entregou uma carta dele?
— A mim? Não! Havia uma carta?
— Creio que, além da encomenda, o capitão Leclère lhe confiou uma carta.
— A que encomenda se refere, Danglars?
— Ora pois, a que Dantès deixou em Porto Ferrajo.
— Como sabe que ele tinha uma encomenda para deixar em Porto Ferrajo?
Danglars ruboresceu. — Ia a passar à porta da cabina do capitão, e como esta se encontrava entreaberta, vi‑o entregar a encomenda e a carta a Dantès.
— Ele não me falou nela — respondeu o armador. — Mas, se houver alguma carta, ele há de entregar‑ma.”
Alexandre Dumas, in O Conde de Monte Cristo, Relógio D’Água Editores, pp.7-11

Sem comentários:

Enviar um comentário