Bandeiras
e máscaras1
Esse é o tempo cruel
que antecede o amanhecer.
Em seu rastro marcham os filhos das estrelas e os herdeiros
[da penumbra.
Na moldura das horas as intenções se partem.
Ali, os justos ensaiam seus passos.
Acolá, nos becos, os ânimos crepitam
e engatilham seus gestos.
Nas ruas as faces empunham bandeiras,
as máscaras escondem punhais.
Passo a passo, portando
consignas e estandartes, a multidão
[caminha...
ocupam estradas, bloqueiam rodovias, paralisam cidades,
avançam no seio da tarde denunciando os charcos do poder e
[os leilões da mais-valia.
É o nosso “Dia de Lutas”, gritam os sindicalizados.
São cinquenta, são cem mil pedindo tarifas justas,
terras repartidas, quarenta horas semanais...
Faixas, cartazes, coros e gritos:
“Prisão para os corruptos”, “Punição para os crimes da
[ditadura”.
“O povo acordou, o povo decidiu, ou para a roubalheira, ou
[paramos o Brasil”
Eis o espaço do povo,
eis as ruas virtuais,
é a nova democracia,
pelas redes sociais.
Salve moças e rapazes,
salve as faces descobertas,
salve as bandeiras e os sonhos,
erguidos com transparência.
De repente as
fronteiras são rompidas,
sobre as cores da paisagem as máscaras armam seus braços,
quais abutres insaciáveis atacam os cristais e escarram na
[decência.
Atrás dos grandes
escudos os uniformes avançam.
Voam coquetéis e pedras, explodem gazes, morteiros,
soam tiros e foguetes entre o fogo e as barricadas.
Salve os agentes da ordem, salve os bons pretorianos.
O verde-oliva e o negro já cruzam suas espadas,
barras, paus e cassetetes
e as razões abaladas.
Chegou a tropa de
choque nos trajes da truculência.
Surge o gesto inconfessável,
surge a fraude na vergonha e o flagrante forjado.
Asco aos falcões do cinismo algemando a inocência.
Eis o palco dos
tumultos,
eis as cinzas da batalha,
eis o saldo do espanto
e a multidão dispersada.
Restou o ato incompleto,
sem o hino dos professores,
e sem o eco das promessas
na voz dos governadores.
Massacraram a primavera
e a magia da cidade.
Assustaram os pardais,
retalharam a liberdade.
Eis a cultura que herdamos
a esfolar nossas almas.
Abatido por tantos golpes,
o amor é um silêncio
e as avenidas soluçam,
qual um salgueiro de lágrimas.
E agora, eis-me aqui,
diante da poesia,
assistindo desabar as velhas torres do encanto...
Perplexo, que posso ainda?
sou apenas um olhar melancólico diante da esperança.
Indignado ante a mística do horror,
quero transformar em versos os protestos, o confronto, as
[cicatrizes.
A realidade é um idioma intraduzível,
e eu impotente, ante o mistério sinuoso das palavras.
As palavras, oh! as palavras em sua essência,
elas não se revelam a qualquer poeta...
habitam em seu próprio enigma,
são silentes como os hinos do entardecer...
Nesse impasse, entre as imagens e o lirismo,
ante a sensibilidade e a violência,
sei de um roseiral em flor no caminho que me resta,
alhures há um campo de espigas que cantam, balançando
[ao vento
e, nesta palmeira esbelta, a vida é reproclamada nos trinos de
[um ninho em festa.
Curitiba, outubro de 2013
Manoel
de Andrade, in As
palavras no espelho, Escrituras Editora, São Paulo , Brasil, 2018,
pp.239-241
(1) -
Este poema foi declamado em 9 de
dezembro de 2013 pelo radialista Paulo
Branco com imagens de Wasyl Stuparyk e pode ser ouvido nos links:
<http://
www.paulobranco.com/2013/12/bandeiras-e-mascaras.html> e <https://www.
youtube.com/watch?v=HNGVfk4FhQ
Em seu rastro marcham os filhos das estrelas e os herdeiros
[da penumbra.
Na moldura das horas as intenções se partem.
Ali, os justos ensaiam seus passos.
Acolá, nos becos, os ânimos crepitam
e engatilham seus gestos.
Nas ruas as faces empunham bandeiras,
as máscaras escondem punhais.
[caminha...
ocupam estradas, bloqueiam rodovias, paralisam cidades,
avançam no seio da tarde denunciando os charcos do poder e
[os leilões da mais-valia.
É o nosso “Dia de Lutas”, gritam os sindicalizados.
São cinquenta, são cem mil pedindo tarifas justas,
terras repartidas, quarenta horas semanais...
Faixas, cartazes, coros e gritos:
“Prisão para os corruptos”, “Punição para os crimes da
[ditadura”.
“O povo acordou, o povo decidiu, ou para a roubalheira, ou
[paramos o Brasil”
eis as ruas virtuais,
é a nova democracia,
pelas redes sociais.
Salve moças e rapazes,
salve as faces descobertas,
salve as bandeiras e os sonhos,
erguidos com transparência.
sobre as cores da paisagem as máscaras armam seus braços,
quais abutres insaciáveis atacam os cristais e escarram na
[decência.
Voam coquetéis e pedras, explodem gazes, morteiros,
soam tiros e foguetes entre o fogo e as barricadas.
Salve os agentes da ordem, salve os bons pretorianos.
O verde-oliva e o negro já cruzam suas espadas,
barras, paus e cassetetes
e as razões abaladas.
Surge o gesto inconfessável,
surge a fraude na vergonha e o flagrante forjado.
Asco aos falcões do cinismo algemando a inocência.
eis as cinzas da batalha,
eis o saldo do espanto
e a multidão dispersada.
Restou o ato incompleto,
sem o hino dos professores,
e sem o eco das promessas
na voz dos governadores.
Massacraram a primavera
e a magia da cidade.
Assustaram os pardais,
retalharam a liberdade.
Eis a cultura que herdamos
a esfolar nossas almas.
Abatido por tantos golpes,
o amor é um silêncio
e as avenidas soluçam,
qual um salgueiro de lágrimas.
assistindo desabar as velhas torres do encanto...
Perplexo, que posso ainda?
sou apenas um olhar melancólico diante da esperança.
Indignado ante a mística do horror,
quero transformar em versos os protestos, o confronto, as
[cicatrizes.
A realidade é um idioma intraduzível,
e eu impotente, ante o mistério sinuoso das palavras.
As palavras, oh! as palavras em sua essência,
elas não se revelam a qualquer poeta...
habitam em seu próprio enigma,
são silentes como os hinos do entardecer...
Nesse impasse, entre as imagens e o lirismo,
ante a sensibilidade e a violência,
sei de um roseiral em flor no caminho que me resta,
alhures há um campo de espigas que cantam, balançando
[ao vento
e, nesta palmeira esbelta, a vida é reproclamada nos trinos de
[um ninho em festa.
Curitiba, outubro de 2013
www.paulobranco.com/2013/12/bandeiras-e-mascaras.html> e <https://www.
youtube.com/watch?v=HNGVfk4FhQ
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