Neste espaço , Miguel Torga tem sido uma assídua presença. Contista , romancista, poeta , diarista, ensaísta foi prolífero numa obra que se mantém actual. Dele, guardo o fascínio que me tomou ao descobri-lo na voz do meu pai. Mais tarde, a sua produção literária marcou-me de tal modo que, enquanto estudante universitária, tinha como objectivo acabar o curso com uma tese sobre Miguel Torga. Nunca deixou de me surpreender, de me tocar pela beleza da sua escrita. Recordá-lo, através das notas biográficas de quem o conheceu, é o prazer deste dia 16 de Novembro de 2022.
Miguel
Torga (1907-2005)
por
Maria Luisa Paiva Boleo
"Conheci Miguel Torga em Coimbra.
Encontrava-o muitas vezes no eléctrico carreira nº 3, quando ambos
regressávamos dos nossos respectivos trabalhos, nos anos 70, rumo à parte alta
da cidade.
Médico que sempre foi a par de
escritor, terminava as consultas no seu consultório no Largo da Portagem, 45 e
eu já apanhara o mesmo eléctrico duas paragens antes, na Av. Fernão de
Magalhães onde trabalhava então, na Federação dos Grémios da Lavoura da Província
da Beira Litoral, num prédio emblemático, todo forrado a azulejos amarelos, que
felizmente ainda não sofreu a voragem das demolições, mesmo junto à estação dos
caminhos-de-ferro, mais conhecida em Coimbra por Estação Nova.
O meu pai, Manuel de Paiva Boléo, foi
professor da Universidade de Coimbra na Faculdade de Letras e, desde sempre, na
minha família se falou de Miguel Torga, também porque a mulher do escritor,
Andrée Crabbé Rocha também professora de Letras cruzava-se com o meu pai na
faculdade. Uma irmã minha, amiga do Leandro Morais Sarmento morava ao lado de
Miguel Torga e passavam lá muitos fins de tarde a conversar. Lembro-me da minha
irmã comentar que lhe parecia Miguel Torga ter uma grande angústia perante a
morte, o que é patente no seu «Diário».
A admiração e o conhecimento da obra
de Miguel Torga eram partilhados na minha família, onde a minha mãe nos
recitava «Herodes» “o tal das tranças” lá na Judeia que foi para o Inferno “só
porque não gostava de crianças” e outros textos.
Como é sabido Miguel Torga não era uma pessoa
muito dada, mas eu várias vezes meti conversa com ele, até porque temas não faltavam dado vivermos na mesma
cidade. Mais de uma vez fiquei ao seu lado no tal eléctrico, e, se muitas
pessoas o conheciam, muitas mais naquela carreira ignoravam quem era aquele
senhor, de faces magras, como que esculpidas em rocha, com um tom de pele
escura e um olhar penetrante. Com o tempo muitas mais sabiam que ele era um
escritor de repercussão mundial e uma das glórias de Coimbra, embora ali não
tenha nascido.
Mais tarde, nos anos 90, conheci em Lisboa uma
japonesa que foi professora de literatura portuguesa numa universidade de
Tóquio e que traduziu vários textos de Miguel Torga para japonês. Chama-se
Takiko Okamura e é muito conhecida no meio literário português, porque já foi
bolseira do Instituto Camões e penso que da Gulbenkian e que, além de Torga, já
traduziu José Cardoso Pires e «Os Lusíadas» para japonês e publicou há escassos
anos (2003, salvo erro) uma bem documentada biografia de Wenceslau de Morais,
em japonês. A professora Takiko admirava muito Miguel Torga com quem esteve na
sua terra natal mais de uma vez e com quem tirou fotografias, que me mostrou.
A religiosidade de Torga que perpassa pela sua
obra é tão autêntica, percebe-se que foi forjada na vida dura que levou em
criança, na relação próxima entre o céu e a terra. Mais tarde, no Brasil em
casa do tal tio que o obrigava a trabalhos duros, a imensidão da natureza e
quantas vezes não se terá interrogado sobre o que afinal fazemos neste mundo e
um Deus que nem sempre nos parece magnânimo, perante tanta rudeza que nos
rodeia, nas relações humanas e da paisagem agreste.
Adolfo Correia Rocha, nasceu a 12 de Agosto
(dia de Santa Clara) de 1907 em S. Martinho de Anta, numa pequena aldeia de
Trás-os-Montes, distrito de Vila Real. Filho de camponeses pobres, o pequeno
Adolfo foi sempre muito chegado à mãe por quem nutria uma enorme afeição, como
ele próprio diria em «A Criação do Mundo». Eram três irmãos. Em 1913 Adolfo
Rocha terminou a escola primária com o Sr. Botelho, a quem Miguel Torga dirá
que deveu muito da sua formação.
«Um mundo! Um nunca acabar de terra
grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao
céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica
contrição»
Miguel Torga, pseudónimo que escolheu
por duas razões: Miguel por ser o nome próprio de dois mestres da língua
castelhana como Cervantes (1547-1616) e Unamuno (1864-1936) grandes escritores
também preocupados com a alma humana. E Torga de «torgas» urzes que florescem
nas terras transmontanas, cor de vinho, com profundas raízes bem metidas nas
rochas. Que melhor nome poderia ter escolhido? Não é ele também uma rocha, até
no nome?
Adolfo terminou a 4ª classe com distinção e o
pai percebeu que devia continuar a estudar, o que era raro na época nos meios
rurais. Escapou assim à vida no campo e à enxada, que trocaria pela caneta. O
pai ofereceu-lhe um cavaquinho quando terminou a 4ª classe e por não ter posses
para o poder mandar estudar disse-lhe: «tens de escolher ou o Seminário ou o
Brasil»
Adolfo Rocha esteve um ano no
Seminário de Lamego, mas aos 13 anos (em 1920) optou pelo Brasil tendo ido para
casa de um tio – fazenda de Santa Cruz, no Estado de Minas Gerais. Ali a vida
do futuro escritor não foi fácil: mungir as vacas, cujo leite era o alimento da
casa, tratar dos porcos, ir ao moinho, ir a cavalo buscar o correio longe da
fazenda, fazer a escrita e tudo o mais que fosse preciso. Foram dias de inferno
para o jovem Adolfo, não tanto pelo trabalho, mas porque os tios lhe não
dedicavam grande afecto, e ele que adorava a mãe, sentia fortemente a sua
ausência.
Em 1925, como recompensa pelo trabalho de
cinco anos o tio anuncia-lhe que lhe paga os estudos num colégio em Coimbra.
Fez em três anos o liceu que era de sete.
Em 1928 entrou para o curso de medicina.
Escreveu o primeiro livro de versos «Ansiedade» e em 1929 dá-se com o grupo da
revista «Presença», onde pontoavam José Régio, Branquinho da Fonseca e João Gaspar
Simões, mas cedo o individualismo de Torga o afasta do grupo.
É a altura em que o jovem estudante de
medicina e literato lê os grandes nomes da literatura mundial: Gide,
Dostoievski, Ibsen, Proust, Jorge Amado, Cecília Meireles, etc. Em 1930 publica
«Rampa». «Tributo» e «Pão Ázimo» em 1931.
Em 1932, começou a publicar o que seriam
dezasseis volumes do «Diário».
Acaba a licenciatura em 1933 e passa a
exercer a sua especialidade de clínica geral, na sua terra natal e em Vila Nova
de Miranda do Corvo, mas cedo se radica em Coimbra.
Em 1934 usa pela primeira vez o pseudónimo que
o imortalizaria – Miguel Torga, em «A Terceira Voz».
Escreve, em 11 de Dez de 1934, o poema
«Prece»:
«Senhor deito-me na cama/Coberto de
sofrimento;/ E a todo o comprimento/Sou sete palmos de lama:/Sete palmos de
excremento/Da terra-mãe que me chama./Senhor, ergo-me do fim/Desta minha
condição:/Onde era assim, digo não,/Onde era não, digo sim;/Mas não calo a voz
do chão/Que grita dentro de mim./Senhor acaba comigo/Antes do dia marcado;/O
tiro de um inimigo.../Qualquer pretexto tirado/Dos sarcasmos que te digo.»
Em 1937 escreve «A Criação do Mundo»
iniciando uma autobiografia ficcionada. Viaja pela Europa: França, Itália,
Bélgica, Espanha e por Portugal e colabora na Revista de Portugal dirigida pelo
escritor Vitorino Nemésio. Escreve «Peregrinação»:
«Corro o mundo à procura dum poema/Que perdi
não sei quando, nem sei onde./Chamo por ele, e a voz que me responde/Tem o
timbre da minha, desbotado./Às vezes no mar largo ou no deserto/Parece-me que
sim, que o sinto perto/Da inspiração;/Mas sigo afoito em cada direcção/E é o
vazio passado/Acrescentado.../Areia movediça ou solidão./Teimoso lutador, não
desanimo/Olho o monte mais alto e subo ao cimo,/ A ver se ao pé do céu sou mais
feliz./Mas aí nem sequer ouço o que digo;/O silêncio de Orfeu vem ter comigo/E
nega os versos que afinal não fiz.»
Adolfo Rocha/Miguel Torga chegou a
ter, em 1939, um consultório em Leiria, mas passava os fins-de-semana em
Coimbra, com professores e intelectuais como Paulo Quintela e Vitorino Nemésio, em casa de quem conheceu a futura mulher – Andrée Crabbé, de apelido, por
casamento, Rocha.
Um texto de Miguel Torga sobre a guerra civil
espanhola levou-o à prisão, onde esteve três meses. Casou em 27 de Julho de
1940.
Em 1941, abriu consultório de médico em
Coimbra, no Largo da Portagem, com vista sobre o Mondego – a «sua» janela para
o mundo.
Escreve os célebres contos «Montanha» (mais
tarde com o título «Contos da Montanha» apreendido pela Censura. Começa a
escrever o seu célebre «Diário».
Miguel Torga fez edições de autor,
porque se recusava a entregar os textos previamente à Censura, como era
obrigatório na época e porque, dizem os que o conheceram de perto que era
extremamente económico.
O seu romance «O Senhor Ventura» data de 1943,
mais tarde será transposto para o cinema e foi um dos primeiros a ser traduzido
para o chinês, há poucos anos. Penso que também foi traduzido pela Takiko
Okamura, de que falei, para japonês.
A sua vida literária decorre com regulares
edições. A mulher completa o doutoramento em 1947. A filha nasceu em 1955.
Em 1954 recusou um prémio literário atribuído
por ocasião das comemorações do Centenário de Almeida Garrett.
Em 1960 o prof. Jean-Baptiste Aquarone (da
Faculdade de Letras de Universidade de Montpelier) propõe Miguel Torga para
prémio Nobel da Literatura. O escritor recebe em 1969 o Prémio Literário Diário
de Notícias.
Com o 25 de Abril de 1974 escreveu no Diário
XII:
«Golpe Militar. Assim eu acreditasse
nos militares. Foram eles que durante macerados cinquenta anos pátrios, nos
prenderam, nos censuraram, nos apreenderam e asseguraram com as baionetas o
poder à Tirania. Quem poderá esquecê-lo. Mas pronto de qualquer maneira é um
passo. Oxalá não seja duradoiramente de parada...»
Em 1976, foi-lhe atribuído o Grande
Prémio Internacional de Poesia da XII Bienal de Knokke-Heist (Bélgica). Dois
anos depois foi de novo proposto para prémio Nobel. Em 1978 a Fundação Calouste
Gulbenkian prestou-lhe homenagem nos 50 anos de carreira literária. Em 1980
recebeu o Prémio Morgado de Mateus, ex-equo com o escritor brasileiro Carlos
Drummond de Andrade.
A 10 de Junho de 1989 o júri do Prémio Camões
dá-lhe esse prestigiado galardão e, em Janeiro de 1991, a revista «Le Cheval de
Troie» dedica-lhe um número especial. É mais uma vez nomeado para o Nobel da
Literatura pela Associação Portuguesa de Escritores.
Em 1993 publica o 16º vol. de «Diário». O
último onde escreve o poema «Requiem por mim»
A 17 de Janeiro de 1995, às 12,33
minutos deixa este mundo.
Fiquemos com estas suas palavras:
«Ser livre é um imperativo que não
passa pela definição de nenhum estatuto. Não é um dote, é um dom».
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