O homem, em tempo de guerra, chama-seherói. Ele pode nem por isso ser bravo efugir a sete pés. Mas é, pelo menos, umherói que se põe na alheta.Jean Giraudoux, La Guerre de Troie n’aura pas lieu
por Eugénio Lisboa
“Os países novos têm fome de heróis com que alindem a sua história recente e, por isso, quando os não têm, inventam-nos. A história da humanidade está cheia de heróis duvidosos. Na urgência de os terem, os novos países acabam, por vezes, por mandar para um panteão qualquer o mais improvável dos heróis, com o mais indecente dos currículos.
Viu-se isto, não há muitos anos, quando se fez a trasladação dos supostos restos mortais do guerreiro e chefe vátua, Gungunhana, dos Açores para Moçambique. Foi ali recebido com honras de herói nacional. No entanto, pelo que se sabe da história de Moçambique, na segunda metade do século XIX, se o feroz e sanguinário chefe vátua tivesse levado a sua avante e escorraçado os portugueses de Moçambique, o mapa daquela ex-colónia seria hoje diferente, provavelmente amputado de uma boa parte do sul, incluindo a joia da coroa: o porto de Lourenço Marques, que teria sido então incorporado na África do Sul.
Porto que os ingleses de Cecil Rhodes aberta e gulosamente cobiçavam, para isso preparando ambiente, através de uma estridente campanha internacional, ao mesmo tempo que subornavam o tirânico Gungunhana com armas, dinheiro e outras benesses (até uma taça Rainha Vitória…) Ficou para sempre na memória dos que assistiram à cena, o monumental arraial de bordoada que Paiva Couceiro, vestido à civil, infligiu a três correspondentes de jornais estrangeiros, dois ingleses e um americano, que ali se encontravam a agenciar argumentos no sentido de os portugueses serem considerados incompetentes para governar decentemente aquele imenso território (até talvez houvesse, nisso, alguma verdade, mas não era obviamente disso que se tratava).
A verdade é que o Gungunhana nunca foi um herói nacional moçambicano. A tribo a que pertencia, os ngunis (vátuas, para os portugueses), não fazia parte do território de Moçambique, só lá tendo entrado em 1820, já os portugueses ali se encontravam havia três séculos. Aliás os ngunis, guerreiros competentes e bem organizados, foram um flagelo para os pobres moçambicanos: ferozes, implacáveis, escravocratas, esmagaram impiedosamente quatro tribos: os tsongas, os bitongas, os chopes e os vandaus. Fizeram, repito, alguns massacres e dizimaram brutalmente a quase totalidade da tribo chope. Um autêntico genocídio, no qual os actuais governantes de Moçambique não devem rever-se. Quando Mouzinho de Albuquerque finalmente aprisionou o chefe vátua, em Chaimite, prestou um inestimável serviço a Moçambique. É um paradoxo, mas é verdade: foi o colonialista Mouzinho de Albuquerque quem tornou possível aos moçambicanos independentes herdarem intacto o mapa da ex-colónia. Transformar em herói nacional um tirano implacável que tanto mal fez às tribos que havia muito viviam no território de Moçambique, estando mesmo disposto a vender aos ingleses o porto de Lourenço Marques (os ingleses, por venda ou pela força das armas acabariam por ficar com ele, se os portugueses fossem derrotados…), não me parece currículo que justifique por aí além a elevação do genocida a herói nacional do Moçambique independente. Tanto mais quanto, na derrota, Gungunhana, ao contrário dos seus conselheiros próximos, que se portaram galhardamente, ao serem executados brutalmente por Mouzinho – contra todas as leis da guerra – se mostrou um cobarde choramingão, que tremeu, implorou, mendigou perdão e se pôs, para salvar a pele, a oferecer o que tinha e o que não tinha. Chegado a Lisboa, implorou abjectamente que o levassem à presença do rei D. Carlos, para lhe pedir perdão e que lhe permitisse voltar para Moçambique, onde se comportaria muito bem. Não é desta massa que se costumam fazer os heróis.
Foi, de resto, por saberem que o Gungunhana não ofereceria resistência aos portugueses e se renderia sem lutar (aliás, o seu exército estava, por esta altura, reduzido a um terço) que muitos dos seus apoiantes mais próximos se puseram em fuga. O próprio Mouzinho sabia disto e portanto a sua proclamada e muito publicitada audácia de entrar em Chaimite com poucas dezenas de soldados não foi tão admirável como isso. No fundo, limitou-se a ir prender um leão aniquilado, abandonado (nesta altura, até pelos ingleses…) e pateticamente chorão.
Espero que os moçambicanos de hoje reflitam bem e não continuem a alimentar este mito com pés de barro. O que até talvez já estejam a fazer, porquanto, em lugar de lhe mandarem os restos mortais para o quer que seja panteão, os depositaram modestamente na fortaleza de Maputo, onde curiosamente se encontra também a estátua apeada de Mouzinho. Ao qual se deve – a ele, sim, e a Paiva Couceiro, que por um triz salvou o quadrado defensivo, em Marracuene – que os sucessores das tribos flageladas pelo Gungunhana tenham podido herdar, intacto, o mapa de Moçambique. Malhas que o império tece!”
04.06.2021
Eugénio Lisboa
É sempre bom ler o Eugénio Lisboa! Mesmo quando se tem má vista...
ResponderEliminarÉ sempre bom ler o Eugénio Lisboa. Mesmo quando se tem má vista...
ResponderEliminarMais uma história da nossa História que nos meus tempos de estudante era contada de maneira bem diferente.....
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