Livraria El Ateneo, Buenos Aires , Argentina |
Livraria Shakespeare & CO, Paris, França |
por Daniel Pennac
1
« Os alunos entram muitas vezes numa livraria como quem entra numa farmácia.
Dirigem-se ao livreiro com a famosa “lista de livros a ler”, como um doente com
a sua receita. Vêem o livreiro desaparecer no laboratório, de lista na mão, e
reaparecer com uma pilha de obras “receitadas”. Diga-se de passagem que o termo
“receituário” não me parece o mais indicado, tratando-se da difusão de livros.
Cheira demasiado a remédio. A leitura não resulta de uma receita: “leiam três
gotas de Mallarmé de manhã e à noite, num grande copo de interpretação… Um mês
de Educação Sentimental e depois veremos o que darão as vossas
análises… À procura do tempo perdido, não interrompam o tratamento
antes de chegarem ao fim”. Abominável.
Com o seu lastro de literatura anual, o aprendiz de leitor regressa a casa sem
nada saber da livraria de onde acaba de sair. Terminada a escolaridade,
Mallarmé, Flaubert ou Proust terão ficado na sua memória quando muito como
nomes ligados a recomendações de leitura. E em vez de protestar no dia em que a
livraria do seu bairro for substituída por um fast-food, levará lá
os filhos para não ter que viver entre livros esse momento de lazer.
2
Esta concepção fármaco-terapêutica da livraria é a consequência de um ensino da
literatura de tipo medicinal. Desde a noite dos tempos que o método é o mesmo;
só os instrumentos mudam. Pegamos nos textos e esquartejamo-los na mesa de
dissecação, na falsa esperança de que os alunos encontrem nas suas entranhas a
beleza redentora e o sentido libertador. Esta prática médico-legal assusta
muita gente. Por muito “escolhidos” que sejam, os nossos fragmentos de cadáver
assustam os alunos. Os comentários que esperamos deles ficam-lhes entalados na
garganta e nós concluímos apressadamente que eles não se interessam pela
literatura. Se “não gostam de ler”, a responsabilidade não é nossa, é do mundo
inteiro, com o seu cortejo de canais de televisão, de desemprego, de famílias
monoparentais, de emigração intempestiva, de consumismo desenfreado, de
ciber-tentações… A culpa é do sistema, a culpa é da modernidade, a culpa é de
tudo o que quiserem menos nossa, nós que somos instâncias tão convincentes!
“Instâncias”… Mais outro termo extravagante quando se trata de dar a ler! (São
incontáveis os estragos provocados nas escolas – e, portanto, nas cabeças –
pela caixa de ferramentas da linguística). Como aqueles médicos especialistas
que se interessam mais pela doença do que pelos doentes, nós, as “instâncias”,
batemo-nos muitas vezes pelo “livro” sem nos preocuparmos em formar leitores.
Armamo-nos em guardiões de um templo cujo esvaziamento deploramos, enquanto nos
vamos regozijando por ele estar tão bem guardado.
3
Guardião do templo… É o mais fácil de recrutar; o mais fácil de formar. (Em
breve se dirá “formatar” – o que até será mais correcto). Peguem num livro, num
autor, num movimento literário, retirem-lhe tudo o que faz dele um organismo
vivo, suguem-lhe toda a substância, mumifiquem-no, transformem-no num culto e
terão o vosso templo. Com alguma habilidade, até poderão ser o seu guardião.
Os guardiões do templo reconhecem-se por aquilo que decretam e por aquilo que
lamentam.
Decretam a necessidade de ler, mas lamentam a morte da literatura. (Ah! nunca
mais surgiu um romancista digno desse nome depois de Gide! Nenhum filósofo
desde Sartre! Nada de novo desde o surrealismo…) Decretam a libertação através
do livro e lamentam que a leitura não passe de um divertimento. Decretam a
excelência, lamentam a mediocridade (quinhentos romances na rentrée e nem um
que preste!)
Decretam e lamentam…
Mas não deixam passar nada.
Decretam e lamentam…
Fora de qualquer responsabilidade.
E porque haveríamos de nos sentir responsáveis, nós que tanto nos “batemos pelo
livro”?
Todas essas sumidades que “se batem por” sem nunca se aproximarem da vida…
4
Dito assim, “o livro” não significa grande coisa. Quando muito, a designação de
um mercado, o departamento de um ministério, o nome de uma política, um
orçamento, uma rubrica no canto de uma folha, um produto, um conceito… É isso,
“o livro”. O que equivale a nada, em termos de vida. Sem os homens e as
mulheres que dele fazem parte, sem toda essa vida que fervilha dentro dele e à
volta dele, sem que o tenhamos lido, sem os poucos ou os muitos a quem iremos
divulgá-lo, sem esse desejo de o fazer passar de mão em mão, o livro não é
nada.
“Eu bato-me pelo livro”. Uma ova! Pára de te bater e dá-o a ler, morcão!
Tenta-nos! Põe de lado o teu cabaz de decretos e passa-nos o último bom romance
ou o último ensaio brilhante que tenhas lido. A leitura? É preciso sentir a
necessidade imperiosa dela no brilho dos teus olhos, no calor da tua voz, na
fúria do teu desespero! Passa um! E depois falaremos do teu “combate em prol do
livro”. Pára de lamentar e procura! Revolve a pilha dos teus quinhentos
romances da rentrée, lê-os todos e descobre! Se não descobrires um bom romance
francês, procura no resto do mundo! Descobre, lê e passa-o a outro! Faz o que
te compete. Já que dizes que te bates pelo livro, começa por aquele que vais
dar-me a ler, apenas esse. Isso já será muitíssimo. Em vez de te armares em
grande espírito deprimido, em sumidade ultrajada…
“Nada que preste em quinhentos romances da rentrée”… Parvalhão.
5
Já se vê que ser guardião do templo não é uma função, é um estado de espírito,
um papel. É a leitura limitada ao conhecimento, o conhecimento reduzido ao
adquirido. E um lugar de porteiro vitalício. Encontramos guardiões do templo em
todos os sectores da cultura e do livro; o editor, o vendedor, o livreiro, o
professor, o bibliotecário, o crítico, o universitário, o adido cultural e o
próprio leitor podem ser tentados por esse papel. E nas outras corporações,
entre os médicos, os arquitectos, os advogados, os políticos… Até entre as
carpas deve haver um templo a guardar. Guardião do templo é uma tentação; é
sinal de uma esterilidade altiva, um exílio na certeza, ou seja, uma coisa bem
afastada da vida.
Outros, felizmente – editores, livreiros, professores, bibliotecários,
críticos, universitários, adidos culturais e leitores de todos os quadrantes –
preferem ser passadores. Também não é uma função, mas é algo mais
do que um papel, é uma maneira de ser e de estar, um mergulho na vida, custe o
que custar, a sensação profunda de que “o livro” é um elemento da vida, que
alimenta a vida e se alimenta dela, que é em si mesmo uma troca e que nós somos
os seus agentes. Esses, os passadores, sentem curiosidade por tudo, não
confiscam nada, transmitem o melhor sem envergonhar ninguém com o pior. Se,
globalmente, a literatura actual os desaponta, sabem que mais dia menos dia,
quanto mais não seja como reacção, surgirá no campo literário uma obra digna de
admiração. E que os piores romances têm pelo menos a virtude de produzir esse
húmus do qual acaba por brotar a obra-prima siderante, e que Flaubert não teria
escrito se Emma não tivesse “sujado as mãos nessa poeira dos velhos gabinetes
de leitura”.
6
No que toca à leitura, sempre preferi o convite à recomendação, o encorajamento
à imposição, o exemplo à estátua, o passador ao grande sacerdote e o livreiro
ao farmacêutico. Sempre achei que um curso de Francês que não desembocasse numa
livraria ou numa biblioteca não era, no fundo, mais do que um exercício de
autocomplacência. A livraria é a escala do livro antes de nos tornarmos os seus
destinatários. Por isso é preciso ensinar os alunos a utilizá-la e, para tal,
criar neles o desejo de correrem para lá, levá-los mesmo até lá, abrir-lhes as
portas de par em par depois de uma aula à porta fechada. Espanta-me que se
possa elogiar La Princesse de Clèves sem mostrar onde e como encontrar Madame
Lafayette. E Lagerloff, que país? E Borges, que continente? E Gogol, que
língua? E este e aquele, poesia? teatro? filosofia? romance?… Tantos passeios
no tempo, tantas viagens em todas as dimensões da classificação, tantos
deliciosos devaneios ao longo das prateleiras de livreiros cúmplices que
poderemos proporcionar, nós, as “instâncias”, por muito pequena que seja a
nossa preocupação de dar a ler.
7
Eu cá devo tudo aos passadores. Não só o meu trabalho de escritor, que correu
de boca em boca, mas também as minhas leituras, que também contam na felicidade
de uma vida. Devo-lhes, por exemplo, ter feito de cada estação de metro a
promessa de uma livraria. Saímos na estação Jourdain e deparamos com L’Atelier.
Ledru-Rolin? La Terrasse de Gutemberg. Sèvres-Babylone? Chantelivre. Villiers?
L’Astrée. Pont-Marie? Ignazi. Vavin? Tschann, Art et Littérature.
Censier-Daubenton? La Boucherie, Presse Bouq, L’Arbre à Lettres. Saint-Marcel?
Le Cerf volant. Goncourt? Libralire, Les Guetteurs de Vent. Alésia? Alésia. Les
Abesses? Les Abesses. Pernety? Tropiques. Jules-Joffrin? L’humeur vagabonde.
Montreuil? Folies d’encre. Vincennes? Mille pages. Sceaux? Le Roi lire.
Créteil? Chroniques…
Grandes, médias, pequenas ou minúsculas livrarias, múltiplos passeios que posso
estender a toda a França e ao longo da minha vida. Incalculável o número de
horas que passei, quando era criança, a deambular pelos corredores da Sorbonne,
em Nice, contagiado pela felicidade que todas as noites via estampada no rosto
do meu pai, mergulhado na leitura de um livro, enterrado no maple, envolto no
cone de luz do candeeiro e no fumo do cachimbo, arquétipo do prazer de ler. E
as conversas com monsieur Rodin, livreiro que se tornou um mito, que não era do
meu quadrante político e nem sempre comungava dos meus gostos literários, mas
que me arrancava à minha letargia adolescente falando-me da literatura de todos
os cantos do mundo! E aquele apaziguamento na livraria Corti, ouvindo o velho
livreiro falar de livros essenciais, mas também das árvores do Luxemburgo, ali
adiante, do outro lado da rua Médicis, em frente da sua livraria…
8
Há quinze anos, a 10 de Junho de 1985, entrei numa livraria em Grenoble,
chamada Nuits blanches, mas que só vendia romances “negros” [1]. A
minha intenção era pedir ao livreiro que me abastecesse de livros para as
férias. Que me vendesse dez títulos à sua escolha e que aperfeiçoasse a minha
cultura numa área em que eu era ainda um aprendiz. Antes que eu pudesse abrir a
boca, um jovem de olhar bem-disposto mas atento, que eu nunca vira antes e que
não me conhecia de parte nenhuma, meteu-me entre as mãos o meu próprio Au
Bonheur des ogres [2], declarando num tom peremptório:
– Leve este e leia. Depois paga, se tiver gostado.
Fugi dali de livro na mão, envergonhado, encantado, confuso, radiante, mas sem
ousar dizer ao jovem livreiro que eu era o autor desse livro e que ele acabara
de me fazer entrar na melhor fase da minha vida.
Hoje, quinze anos depois, no TGV que me traz de Lyon, onde fui visitá-lo, tenho
a sensação de que devo agradecer a esse passador louco, e a todos os do seu
estilo, agradecer-lhes a mais do que um título –o belíssimo nome que ele acaba
de dar à sua nova livraria : Passage."
Daniel Pennac, in Gardiens et Passeurs, (Ed. Adelc, 2004) [1] policiais
[2] “O paraíso dos papões”, Ed. Terramar.
Sem comentários:
Enviar um comentário