Todo o leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo.A obra não passa de uma espécie de instrumento óptico oferecido ao leitor a fim de lhe ser possível discernir o que , sem ela, não teria certamente visto em si mesmo.Marcel Proust
"(...)De todos os momentos que me marcaram, há um que se definiu capital: o tempo da leitura, da descoberta do livro. Mário Quintana afirma que Os Livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas. É uma verdade absoluta. Nunca mais fui a mesma desde que descobri o livro.
Referi já que a minha mãe nos lia todos os dias. Era um momento de grande atenção. A minha mãe lia muito bem. Sabia captar a nossa curiosidade. Não recordo que qualquer um de nós evidenciasse alguma distracção nesses momentos. Todos permanecíamos atentos e suspensos pela voz da minha mãe que dava a cada episódio o tom perfeito que lhe convinha.
A televisão apanhou-nos já tínhamos, há muito, o gosto pela leitura. Não sei dizer, com total exactidão, quando apareceu o primeiro aparelho de televisão em nossa casa. Sei apenas que já não residíamos na Quinta. Vivíamos numa bela cidade à beira-mar. Era e continua a ser para mim, uma das mais belas cidades portuguesas. Acredito, pois, que teria cerca de nove ou dez anos quando o meu pai trouxe um móvel com a televisão incorporada, mas ela nunca substituiu o livro. A competição nunca aconteceu. O livro era rei.
Havia livros pela casa, mas a biblioteca estava no escritório do meu pai. Era lá que estava arrumado todo o tipo de livros. Havia de tudo. Livros encadernados, com letras douradas, nos mais diversos tamanhos. Enciclopédias e grandes dicionários. Uma Bíblia enorme que nos assustava pelo peso , grandiosidade do papel e profusão de imagens. Tudo a exigir o maior cuidado. O Atlas , que, cedo, aprendi a manusear para poder situar os países. Numa família, com ascendência estrangeira, visualizar o mundo era uma aposta necessária.
E eram tantos os livros que nunca mais me pude libertar do seu fascínio. Comecei a lê-los, sem qualquer restrição, a partir dos dez anos. Até lá , ia lendo os livros que só a minha mãe nos entregava. Foi com ela que li as histórias da Condessa de Ségur: Férias, As meninas exemplares, Um bom diabrete, Os desastres de Sofia, Memórias de um burro, O corcundinha e outras mais. Mulherzinhas de Louisa May Alcott. A obra de Charles Dickens em que os livros Oliver Twist , Grandes Esperanças, David Copperfield, Um conto de Natal me emocionaram muito. Aquela miséria , exploração, desprezo e atrocidades para com os pobres e crianças confundiam o conforto do meu quotidiano de infância. Aquele mundo inglês chocou-me e fez-me pensar que não gostaria de conhecer um país tão violento e de tanta segregação social.
Da mesma altura e pela mão da minha mãe li “ O suave Milagre” de Eça de Queirós; “As aventuras de Robison Crusoé”, de Daniel Defoe; “Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift ; “Platero e Eu”, de Juan Ramón Jiménez; "Aventuras de Tom Sayer" e "As Aventuras de Huckleberry Finn" de Mark Twain; “ Vinte mil léguas submarinas” e “A Viagem ao centro da Terra” de Jules Verne; “ A ilha do tesouro”, de Robert Louis Stevenson; (...) e nunca mais parei. Vieram, em descobertas surpreendentes, tantos outros autores e tantos mais livros, num enamoramento que chega até hoje.
Aos poucos, fui-me iniciando nos grandes romances e nos grandes autores nacionais e estrangeiros. Lia copiosa e diversamente. Tudo me interessava.(...)
Era insaciável o meu desejo de ler, LER. Não importasse o quê, nem como. Quando estive internada no colégio, todas as noites montava uma espécie de tenda com os lençóis , para ler debaixo da cama. Fazia-o com a ajuda de uma pilha eléctrica, arriscando-me a ser castigada se fosse descoberta. O prazer da leitura era tanto que me vestia de uma resistente imunidade a qualquer desses temores. Lia tudo: Hall Caine, Victor Hugo, Dostoievsky , Erskine Caldwell, Stendhal, Jane Austen, Leon Tolstoi , Somerset Maugham, Leon Uris, Boris Pasternack, José Régio , Romain Rolland, Zola, Balzac, André Gide, Pearl S. Buck, Daphne Du Maurier, Gustave Flaubert, Katherine Anne Porter, Jean Lartéguy, Leon Uris, Scott Fitzegerald, John Steinbeck, Aldous Huxley, H.G. Wells e também escritores brasileiros que iam desde o fundador José de Alencar em Iracema, Guarani , romances que me tolhiam de mágoa , a Machado de Assis, Manuel António Alves, Euclides da Cunha em “os Sertões”, obra que me marcou, José Lins do Rego, Erico Veríssimo, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e um sem fim de outros escritores que se foi alargando à medida que fui crescendo.
Nesta fase de crescimento e descoberta , misturei vários géneros, vários autores e diferentes graus de interesse e de valor literário. Creio que foi um tempo de grande curiosidade que me fez abrir ao mundo, pelo que não se encerra, aqui, este tema.
Abordá-lo-ei mais tarde. É talvez um dos maiores temas da minha vida: os livros. Há quem diga que somos aquilo que lemos."
Maria José Vieira de Sousa, in O livro que já escrevi, Maio 2018
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