por Eugénio Lisboa
« Cumprindo-se, no próximo mês de Setembro, 120 anos do nascimento do grande escritor José Régio, ofereceu-se-me fazer algumas considerações que me parecem pertinentes. Tanto mais quanto o operoso Centro de Estudos Regianos (CER), de Vila do Conde, acaba de lançar uma notável adição à extensa bibliografia regiana: o livro MAS RÉGIO É GRANDE!, da autoria de Isabel Ponce de Leão.
Um país pode – e deve – ser julgado pelo modo como (mal)trata os seus grandes homens e também pelo modo como acarinha e promove os seus falsos grandes homens. Neste aspecto, Portugal é um “estudo de caso” bem peculiar. Adoramos os “génios” preguiçosos e estéreis e detestamos os trabalhadores produtivos, acarinhamos os vigaristas espertos e detestamos os homens sérios, perdoamos mais facilmente ao malandro desenrascado do que ao pobre honesto que teve um momento de fraqueza. Em suma, gostamos de aplaudir ao contrário.
Poucos verdadeiros grandes homens produziu, no século XX, a pátria de Camões e Camilo, com a indiscutível estatura – em profundidade e variedade de dons – de um José Régio. Mas também poucos foram tão enviesadamente avaliados e quase sempre pelas más razões. No entanto, curiosamente, o autor de Biografia foi sendo treslido por todos os “ismos” que se sucederam à Presença, que liderou e orientou, mas nunca foi esquecido ou negligenciado. Não foi sendo desprezado, antes foi sendo calorosamente atacado – óptimo sinal, `à rebours…Seja como for, uns torciam o nariz porque ele era “religioso”, outros fizeram-lhe boquinhas porque ele, afinal, não era religioso ou era um falso religioso e até escrevera sátiras contundentes à Igreja Católica daqueles tempos, dizendo, preto no branco, que ela nada tinha a ver com o cristianismo. Uns, porque ele só fazia “psicologia” (embora ele se fartasse de fazer, abundante e intensamente, outras coisas), não se preocupando, diziam, com os “verdadeiros problemas do nosso tempo” (como se o universo que a psicologia sonda não tivesse que ver com problemas de todos os tempos, incluindo o nosso). Os neorrealistas, mesmo os bem intencionados e admiradores dos dotes artísticos de Régio, lamentavam que ele se não deixasse orientar pela cartilha do soviético Jdanov, que indicava com muito cuidado a arte que os artistas deviam fazer e os temas que deviam glosar (sempre com um optimismo, de rigor, em relação aos belos e cantantes amanhãs). Régio, corajoso em extremo, como, de vários modos, demonstrou, achava, porém, tal como Karl Marx (ignorado pelos jdanovistas), que os artistas deviam ser deixados em paz, para fazerem o que muito bem entendessem: e fazendo-o, seguirem apenas os ditames do seu “canto profundo” e não os ditames dos obtusos burocratas da cultura. Homens cultos, como Marx, Engels e Lenine, nunca julgaram os artistas pela sua inclinação ideológica, mas antes pela qualidade da sua arte (vale a pena notar que Lenine preferia, em voz alta, o Pushkine burguês e decadente, ao Maiakowsky, revolucionário e tudo, e nunca escondeu a sua imensa admiração pelo conde e místico Tolstoi). É pois paradoxal e muito doloroso ter de vir aqui dizer, porque é verdade, que o vilipendiado autor de As Encruzilhadas de Deus afinava infinitamente mais pelo diapasão de Marx – com a sua abertura à arte, sem pruridos de ideologia – do que os neorrealistas, sempre a reboque de um Jdanov ignorante, obtuso e normativo.
A esquerda via com maus olhos o alegado “apolitismo” de Régio, quando este, sendo embora funcionário público vulnerável, nunca se esquivou, ao longo de toda a sua vida profissional, a mostrar claramente de que lado se encontrava, assumindo as mais vigorosas posições, em textos frontais dirigidos a Salazar e ao Estado Novo e tendo sido o único professor do Liceu Mouzinho da Silveira, em Portalegre, a dar a sua inequívoca solidariedade – depondo a seu favor – a um colega suspenso por razões políticas (a um aluno que entrara na aula, vestido com farda da Mocidade Portuguesa, o docente mandara-o para casa, para se vestir convenientemente).Textos violentíssimos, como “O Recurso ao Medo” e as sátiras acutilantes dirigidas ao Estado Novo e à Igreja Católica então vigente, no seu livro A Chaga do Lado (1954), não têm muitos iguais, em eloquência vituperativa, na nossa literatura de escárnio e maldizer. A Igreja Católica virou-lhe decididamente as costas, a partir deste livro pestiferado e Régio preparou as malas (confessou-mo mais tarde) para ir viver do jornalismo, por acreditar que seria expulso do ensino após ter publicado aquele livro contundente. Não foi, nem ele soube nunca porquê. Talvez porque fosse já demasiado célebre, dentro e fora de Portugal, por Vilaret lhe ter divulgado a sua poesia por todo o lado, e porque, apesar de tudo, ainda teria, dentro da Igreja e das estruturas do regime, alguém poderoso e suficientemente astuto para entender que seria mau para o dito regime agredir aquela figura de velho bardo recitado e cantado por todo o lado (dizia-se que Caetano, mesmo rilhando os dentes, o admirava).
Grande na poesia, na ficção, no teatro, na crítica, no ensaísmo, na autobiografia, Régio foi quase sempre avaliado com relutante empatia, em grande parte, porque perguntava mais do que respondia, embora, diga-se de passagem, os verdadeiros patrões do marxismo não vissem nisto inconveniente e o sempre oportuno Voltaire tivesse afirmado que “devemos julgar um homem mais pelas suas perguntas do que pelas suas respostas.” Régio era, resumindo, incómodo. Não oferecia receitas garantidas para a felicidade e analisava com grande lucidez e sem analgésicos as armadilhas que o ser humano encontra no seu caminho em busca do triunfo, do amor, da amizade e de algum sentido que a vida possa ter. Inquietava, não sossegava. Analisava e descrevia, agonizava, mas não confortava nem fazia batota com os escolhos encontrados. Mas amaciava a dor que a lucidez trazia com o prazer estético que a arte propicia aos que a sabem fruir. Prazer que não é promessa de nada a não ser de uma certa elegância no compreender a aventura humana, sem lhe decifrar nem a causa do começo nem o propósito que possa ter.
Vendo bem, que o país lhe tenha agradecido o dom da obra, de modo enviesado, também está na natureza destas coisas. O grande Baudelaire, que muito bem sabia do que falava, porque as suas Flores do Mal o tinham arrastado às barras dos tribunais, observou, justiceiramente, que “as nações só têm grandes homens apesar delas” , isto é, apesar da obstrução que elas normalmente põem ao percurso criador deles. Régio, como outros antes e depois dele, foi grande apesar de Portugal.
Vem tudo isto a propósito do belíssimo livro que Isabel Ponce de Leão acaba de publicar, intitulado MAS RÉGIO É GRANDE!, em recheadíssima edição do incansável Centro de Estudos Regianos (CER), de Vila do Conde. Tendo dedicado toda uma vida de atenção minuciosa e altamente perceptiva à obra literária e plástica e aos manuscritos do grande escritor, Isabel Ponce Leão está, como poucos, apetrechada para uma sondagem profunda e diversificada desta obra complexa, dolorosamente lúcida, intrépida e genial que é a do autor de MAS DEUS É GRANDE! Sondagem sem preconceitos (que são sempre hostis a uma leitura límpida), ao contrário do que foram frequentemente as aproximações feitas à sua obra por contemporâneos devorados por prevenções ideológicas de toda a ordem (e sempre passando ao lado da cintilância dos factos).
O lado “religioso” da obra regiana sempre incomodou as esquerdas, que não perceberam ter o autor de Jacob e o Anjo usado a mitologia cristã em registo metafórico e profano, como outros têm usado as mitologias grega e romana (ou outras), sem inconveniente de maior. Por outro lado, mesmo que a obra de Régio fosse – e não é – religiosa, no sentido corrente, gostaria de saber se os mesmos relutantes críticos de esquerda também mandam pela borda fora toda a grande pintura religiosa de Leonardo, Michelangelo, Rembrandt, Veronese, Raphael, Bruegel, o Velho, El Greco, Dali ou, já agora, a Missa Solene, de Beethoven ou o Requiem de Mozart. Aparentemente, só os incomoda o teor “religioso” do bardo de Vila do Conde, isto é, as metáforas que Régio aproveita, para ungir de sentido universal os conflitos dos seus atormentados fantoches. Por que serão as mitologias grega e romana, que servem de veículo a tanto teatro moderno, mesmo de esquerda, mais aceitáveis do que a mitologia cristã que visa exactamente o mesmo propósito? Não se tratará de puro preconceito, sem qualquer fundamento sério que fundamente a rejeição?
Isabel Ponce de Leão, neste seu livro, valorizado por uma riquíssima iconografia, sonda com uma firmeza que não exclui subtileza e enorme conhecimento, áreas fundamentais como a “escrita do eu”, a “epistolografia”, o Literaturismo” isto é, o aproveitamento de alguma poesia regiana para um turismo culto, o diálogo frutuoso entre poesia e artes plásticas e a sondagem dos singulares manuscritos do autor de POEMAS DE DEUS E DO DIABO.
Muito mais teria a dizer deste livro aliciante e enriquecedor, mas vou limitar-me a transcrever uma curta passagem do prefácio que, para ele, escrevi, e com isso termino:
“Lendo-se estes textos, facilmente se chega à conclusão de que Isabel Ponce de Leão não leu Régio: viveu com ele, ao longo de muitos anos, manuseando-o com ‘mão diurna e nocturna’. (…)… a autora de MAS RÉGIO É GRANDE! dá, em grande, uma resposta e uma lição aos pequenotes ressentidos que têm querido apoucar a estatura do autor de BIOGRAFIA e de HISTÓRIAS DE MULHERES (suspeito, cada vez mais, que muito deste apoucamento tem que ver com o conhecido “estão verdes, não prestam”, da deliciosa fábula de La Fontaine.”)»
Eugénio Lisboa, em ensaio inédito de 20.06.2021
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