terça-feira, 11 de maio de 2021

A ideia da Igualdade

A Ideia da Igualdade
por Aldous Huxley
Fé Dominical e Fé Semanal
"Que todos os Homens são iguais é uma proposição à qual, em tempos normais, nenhum ser humano sensato deu, alguma vez , o seu assentimento. Um homem que tem de se submeter a uma operação perigosa não age sob a presunção de que tão bom é um médico como outro qualquer. Os editores não imprimem todas as obras que lhes chegam às mãos. E quando são precisos funcionários públicos, até os governos  mais democráticos fazem uma selecção cuidadosa entre os seus súbditos  teoricamente iguais. Em tempos normais , portanto, estamos perfeitamente certos de que os Homens não são iguais,  Mas quando, num país democrático, pensamos ou agimos politicamente , não estamos menos certos de que os homens não são iguais . Mas quando , num país democrático, pensamos ou agimos politicamente, não estamos menos certos de que os Homens são iguais. Ou, pelo menos - o que na prática  vem a ser a mesma coisa  - procedemos como se estivéssemos certos da igualdade dos Homens. Identicamente, o piedoso fidalgo medieval que, na igreja acreditava em perdoar aos inimigos  e oferecer  a outra face, estava pronto, logo que emergia novamente à luz do dia, a desembainhar a sua espada à mínima provocação.  A mente humana tem uma capacidade quase infinita  para ser inconsistente.
A quantidade de tempo durante o qual os Homens estão empenhados em pensar ou agir politicamente é muito reduzida , quando comparada  com todo o período das suas vidas; mas as breves actividades do homem político exercem uma influência desproporcionada sobre a vida diária  do homem trabalhador , do homem a divertir-se , do homem pai e marido, do homem senhor de propriedades.  Daí a importância em se saber o que ele pensa na sua qualidade de político e porque é o que pensa. 
Os políticos  e os filósofos políticos  falaram muitas vezes acerca de igualdade do Homem  como se fosse uma ideia necessária  e inevitável , uma ideia  em que os seres humanos  têm de acreditar, devido à própria natureza  da sua constituição física  e mental, em noções tais como peso, calor  e luz.  o Homem é « por natureza, livre, igual e independente»», diz Locke, com a segurança calma de alguém que sabe  que está a dizer qualquer coisa  que não pode  ser contraditada . Era possível  citar literalmente milhares de afirmações semelhantes. «É preciso ser-se louco», diz Babeuf, «para negar tão manifesta verdade».

Igualdade e Cristandade
No entanto, do ponto de vista do facto histórico, a noção da igualdade humana é um produto recente e, longe de ser uma verdade directamente apreendida e necessária, é uma conclusão logicamente tirada de assunções metafísicas preexistentes. Nos tempos modernos, as doutrinas cristãs da irmandade dos Homens e da sua igualdade perante Deus  foram invocadas em apoio da democracia política. Muito ilogicamente, no entanto. Porque a irmandade dos Homens não significa a sua igualdade.  As famílias têm os seus patetas  e os seus homens geniais, as suas ovelhas ranhosas e os seus santos, os seus  êxitos mundanos e os seus falhanços mundanos. O Homem deve tratar os seus irmãos amorosamente e com justiça, conforme os méritos de cada um. Mas os méritos de cada irmão não são os mesmos. Nem a igualdade dos Homens perante Deus significa a sua igualdade conforme ela é entre eles.  Comparada com uma quantidade infinita , todas as quantidades finitas podem ser consideradas iguais. Não existe nenhuma diferença , quando se trata de infinidade , entre um e mil. Mas deixe-se a infinidade fora do assunto, e mil é muito diferente de um. O nosso mundo é um mundo de quantidades finitas e, quando se trata  de assuntos terrenos, o facto de todos os Homens serem iguais  em relação à quantidade infinita que é Deus e inteiramente irrelevante. A Igreja conduziu em todos os tempos a sua política terrena na assunção de que tal era irrelevante. Só recentemente  é que os teóricos  da democracia  apelaram para a doutrina cristã para obterem uma confirmação dos seus princípios igualitários. A doutrina cristã, como demonstrei, não dá tal apoio.

A Igualdade e o Filósofo
Os escritores que no decurso do século XVIII forneceram à nossa moderna democracia política a sua base filosófica, não se voltaram para o Cristianismo para encontrarem  a doutrina da igualdade humana. Eles eram , para começar , quase sem excepção, escritores anticlericais  para quem a ideia  de aceitar qualquer auxílio da igreja teria sido extremamente repugnante. Além disso, a Igreja  conforme organizada  para as suas actividades terrenas , não lhes oferecia  qualquer auxílio, mas sim uma franca hostilidade. Ela representava ainda mais claramente  do que o estado  monárquico  e feudal , aquele princípio medieval de governo hierárquico e aristocrático contra o qual, precisamente, os igualatários protestavam.
A origem da nossa  ideia moderna de igualdade humana tem de encontrar-se na filosofia de Aristóteles. O tutor  de Alexandre o Grande não era, na verdade, um democrata. Vivendo, como o fazia, numa sociedade detentora de escravos , não um escravo ele próprio;  não tinha qualquer motivo para se queixar. Na sua  filosofia política , ele racionalizou a sua satisfação  com o estado  de coisas existentes e afirmou que alguns homens nascem para serem senhores ( entre os quais ele, é claro)  e outros para serem escravos.  Mas ao dizer isto estava a cometer uma inconsistência . Porque era um preceito fundamental no seu sistema metafísico, que as qualidades especificas são as mesmas em todo o membro de uma espécie. Os indivíduos de uma espécie são os mesmos em essência ou substância. Dois seres diferem um do outro na matéria, mas são o mesmo na essência , por serem ambos animais racionais.  A qualidade humana essencial que distingue a espécie Homem de todos as outras espécies é idêntica em ambos.

Inconsistências
Como havemos nós de reconciliar esta doutrina com a afirmação de Aristóteles de que alguns homens nascem para serem senhores e outros escravos? Evidentemente que nenhuma reconciliação é possível; as doutrinas são contraditórias. Aristóteles disse uma coisa  quando estava a discutir os problemas abstractos da metafísica e outra quando, como senhor de escravos , estava a discutir  política. Tais inconsistências são extremamente vulgares, e são geralmente feitas de boa-fé. Nos casos em que estão em causa interesses materiais,onde as tradições sociais e religiosas,inculcadas na infância , os Homens pensarão naturalmente de uma certa maneira ; noutros casos , onde os seus interesses e as suas crenças cedo adquiridas não são afectadas, eles pensarão , também naturalmente  de uma certa maneira ; noutros casos , onde os seus interesses e as suas crenças  cedo adquiridas  não são afectadas, eles pensarão , também natural e inevitavelmente , de uma  maneira inteiramente diferente.  Um homem que pense  e se comporte como um cientista  franco e imparcial enquanto está a reparar o seu automóvel , sentir-se-á ultrajado se lhe pedirem  que pense acerca da criação  do mundo ou da vida futura  a não ser  em termos  de mitologia corrente entre os bárbaros  Semitas  de há três mil anoa atrás ; e , embora inteiramente pronto a admitir que o presente sistema de telefonia sem fios pode ser melhorado, considerará qualquer pessoa que deseje modificar o actual sistema económico  e político como um louco ou um criminoso. Os maiores  génios humanos não estão isentos destas curiosas inconsistências . Newton criou a ciência da mecânica celeste , mas foi também o autor das Observações sobre as profecias de Daniel e o Apocalipse de S. João, de um  Lexicon Propheticum e de uma História da Criação. Com uma parte da sua mente acreditava nos milagres e profecias que lhe  tinham sido ensinadas na infância; com a outra  parte  acreditava  que o Universo é uma demonstração de ordem e uniformidade.  As duas partes  estavam impenetravelmente  divididas uma da outra. O físico matemático  nunca interferira com o comentador  do Apocalipse;  o crente em milagres em nada compartilhava da formulação  das leis da gravidade.  Igualmente, Aristóteles, o senhor dos escravos , acreditava que alguns homens nascem  para mandar e outros para servir; Aristóteles , o matafísico , pensando em abstracto  e alheio aos preconceitos sociais que influenciavam o possuidor de escravos , expunha uma doutrina de essências especificas que comportava a crença na igualdade real e substancial dos seres humanos. A opinião do dono de escravos estava, provavelmente, mais próxima da verdade do que a do metafísico . Mas, é  pela doutrina do metafísico que as nossas vidas são hoje influenciadas."
Aldous Huxley, in Sobre a Democracia e outros estudos, Círculo de Leitores, pp.17-21

Sem comentários:

Enviar um comentário