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André responde a Sónia como sabe e pode:
Lisboa, «1.º 1º de maio vermelho»
"Cara Ingrata,
a tua partida sem despedida foi um golpe duro para o meu orgulho, e a carta ontem recebida custou-me a engolir. (...) O meu fraco talento escriturário não vai conseguir descrever o que foi este 1º de maio com milhares de pessoas desfilando nas ruas , gente de todas as idades, de quase todas as classes , coisa que a nossa geração e as anteriores já desistiam de sonhar. Assistir nem é o termo, havia uma participação espontânea até daqueles como eu, não alinhados. Impossível ficar a olhar de fora, esta movimentação de massas não tinha fora; foi decerto a maior jamais acontecida na capital da pacatice, da chatice adormecida por dois séculos de burguesia estéril, por alguns mais de fidalguia estática de papo para o ar a receber rendimentos do chamado ultramar, desse além-mar-em-África onde percebo que queiras ficar embora não concorde com separação tão apressada, antes de termos tempo ou possibilidade de decidir acerca do futuro, se vamos viver juntos ou se isto não passou de fogo-fátuo. Veremos lado a lado o próximo 1º de maio?
(...) Retomo o relato dos festivos factos: a grande surpresa foi para mim a invenção florista de aparecerem por todo lado cravos vermelhos à venda, que comprávamos como se não os comprar fosse pecado. A Arminda , o Samuel e eu não fugimos à regra, ele sempre muito activo com a sua mania de gerente de gente, deixando-nos para ir ter com outros militantes da margem esquerda, regressando em crescente euforia, dinamismo tipo místico, dirigindo grupos pequenos e obedientes , fazendo figura de chefe que pode vir a ser, multiplicando pão e peixe em forma de slogans, palavras de ordem , canções de vário folclore. Apesar dessa frenética actividade ainda se lembrou de dar os pêsames aos seus inimigos-de-classe pela morte do nosso pai, esclarecendo que o povo não o matou porque o povo não mata ninguém. Não era a ora da violência ou sequer da divergência, sabendo sem saber que por nós passava aquele panteísta espírito colectivo que por momentos torna a multidão um todo, perigoso nas mãos de ditadores, mas exaltante e religioso. Foi a Fátima laica com cravos encarnados em vez dos alvos lenços da procissão do Adeus. Religião , é bom lembrar, significa ligar. nestas manifestações há muito orgasmo.
Eu, que costumo distanciar-me em relação a multidão, desta feita não resisti ao fascínio da festa, pura ilusão , unidade fictícia, terminada apenas os interesses de cada grupo começarem a minar o corpo social. Acabada a manif, as cantigas e falas no estádio agora baptizado « 1º de maio» vão parecer ridículas sobretudo a mim que detesto estádios , lembram-me futebol & Hitler. Por isso não fiquei até ao fim, vim para o quarto dum amigo escrever-te a ver se a carta ainda segue amanhã de manhã. (...)
Ouço ao longe os cláxons dos carros Avenida da Liberdade abaixo. Nossas contradições: festejaste o 25 sozinha , eu passo o 1º de maio sem ti. O teu convite para ir ter contigo aí, se me agrada até entusiasma, não vejo como realizá-lo. Compreendo as razões que me dás, justas , sábias , só sensatas demais. Tenho horror ao bom senso como se dizia que os corpos têm horror ao vazio. Amo a loucura, a aventura , o que há em ti quando te conheci.(...)Que trabalho poderia ser aí o meu , caso consiga partir? Posso acabar o curso em Luanda, menos evidente é subsistir. Aceito sugestões. (...) "
Teu
André
Almeida Faria, in Lusitânia ( romance), edições 70, 1980, pp.71-74
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