sexta-feira, 14 de maio de 2021

Eugénio Lisboa e a mente insubordinada

Eugénio Lisboa
A MENTE INSUBORDINADA
por Eugénio Lisboa

 

Nem a contradição é sinal de falsidade, nem a falta de contradição é sinal de verdade.
                          Pascal

"Vou hoje falar de um certo número de coisas inconvenientes ou mesmo antipáticas. Coisas que normalmente não são ditas, num meio cultural timorato e vastamente acomodatício. Mesmo nas universidades, que são areópagos onde tudo pode e deve ser questionado, prevalece quase sempre uma verdade “aceite” contra a qual se não atrevem os candidatos a uma carreira académica. Em vez de intemeratamente se questionar o que deve ser questionado, sonda-se para que lado sopram os ventos e ajusta-se o curriculum ao sabor da ventania. É triste mas é assim.
Sempre que um personagem de notório gabarito no meio cultural faz a demolição de um nome em voga, ninguém mais se atreve a tocar-lhe nem com pinças. Poderia dar inúmeros exemplos. Quando Eça terçou armas com Pinheiro Chagas, a propósito dos reparos sensatos feitos por este aos desmandos críticos do autor de O Primo Basílio à saga dos descobrimentos, Eça foi, sem dúvida, dos dois, o que teve mais gracinha, mas Pinheiro Chagas foi, também sem dúvida, quem teve razão. “Brigadeiro Chagas” ou não, dizer a Eça que não fazia sentido julgar feitos dos séculos XV e XVI, com a ética do século XIX , era do mais razoável que se poderia observar. Reduzir a saga das descobertas a uma “ignomínia”, como fez o grande romancista realista, era completamente tonto. Mas, para sempre, Chagas passou a ser o “brigadeiro Chagas”, coberto de ridículo, e Eça, o espírito progressista e iluminado. Ninguém, nem a universidade, questionou esta injustiça. Ninguém se atreveu, ao menos, a dizer que a argumentação de Chagas estava admiravelmente construída e melhor escrita. Fazê-lo não renderia juros e era perigoso e, portanto, não se fez. Chagas foi publicamente destruído e mais ninguém se lhe referiu, a não ser como objecto de troça. Assim vai a nossa cultura.
Outro exemplo seria o do célebre ensaio de António Sérgio dedicado ao “Caprichismo romântico na obra do Sr. Junqueiro”. Sérgio, fino crítico literário e bom ouvido para a música do verso, fez muito claramente questão de separar o trigo do joio: o seu ensaio visou não o poeta exímio que era Junqueiro, mas sim o exageradamente aplaudido “maître-à-penser”, que Sérgio desvalorizava. De facto, nessa altura, o desvairo promontório da grandeza de Junqueiro, como filósofo e pensador (ver o que dele dizia, por exemplo, Raul Brandão) só pode comparar-se com a gritaria encomiástica que fez de Eduardo Lourenço o homem “que ensinou os portugueses a pensar”. Nós somos mesmo assim: foge-nos sempre o pé para a idolatria. De qualquer modo, Sérgio, como disse, foi muito cauteloso: sublinhou as egrégias qualidades poéticas de Junqueiro, mas demoliu o pensador que ele pretendia ser. Pois bem: apesar de todas as cautelas, era tão grande a (justa) aura de Sérgio, por essa altura, que Junqueiro morreu para sempre: nunca mais ninguém lhe pegou (até muito recentemente), nem mesmo com pinças. Que pensar de um meio cultural e académico que assim se deixa tão completamente subjugar pela mal lida opinião de um grande “clerc”?
Outro exemplo foi o de Júlio Dantas, destruído pelo “gavroche” Almada Negreiros, com o seu manifesto anti-Dantas. A malta gozou e ainda hoje goza e nunca mais foi ver aos textos se o Dantas só merecia a surriada que lhe fez o autor de Nome de Guerra. O que nunca ninguém disse, porque borrava a pintura, foi que o rebelde Almada não só foi pedir desculpa ao autor de A Ceia dos Cardeais, pela agressão feita, como foi também mexer meio mundo para ser apresentado a Salazar. Assim vão estes egrégios rebeldes. De qualquer forma, se o seu intuito foi assassinar o académico, conseguiu-o plenamente. Assim fazendo sair do horizonte literário, para sempre, um dos nossos mais admiráveis cronistas, homem culto, cosmopolita e civilizadíssimo, cuja prosa limpidamente clássica e vigorosa ficaria bem nas antologias escolares. Uma nota: notável gente da esquerda foi para a Academia, pela mão não ressentida de Júlio Dantas.
Só mais um caso, aliás, dois mas ambos originados pela acção de um grande figurão das nossas letras – refiro-me a Eduardo Lourenço e à sua esforçada tentativa de “reduzir” a estatura da revista Presença (que nunca tinha folheado e nem para ela tinha olhado…) e a não menos esforçada tentativa (coroada de êxito) de apear Sérgio do trono em que este se encontrava, para lá ir-se instalar ele e aí permanecer até à altura da sua morte. Lourenço viu, no segundo modernismo dos presencistas uma inesperada contra-revolução de que a revolução teria sido o primeiro modernismo dos argonautas do Orpheu. Ora o segundo modernismo não se pôs nada contra o primeiro, antes o estudou e carinhosamente o promoveu e, no plano criativo, não o copiou e fez coisa muito diferente, interessando-se por áreas dos séculos XIX e XX, a que os do Orpheu tinham voltado as costas. Em suma, fizeram diferente, mas não agiram contra. Dizer que os alegados terramotos ontológicos de Álvaro de Campos eram superiores a certas sondagens místico-psicológicas, como fez Lourenço, é estar completamente desfocado em relação ao que seja arte. E comparar a alegada contra-revolução do segundo modernismo com o bonapartismo deixa-nos, no mínimo, perplexos. Napoleão não veio pôr travões à revolução de 1789, veio, sim, travar, com decisão, o Terror de 1793, isto é a loucura sanguinária dos Robespierres e quejandos. Por isso foi admirado por grandes espíritos do século XIX, como Beethoven, Goethe e Stendhal, entre outros. Confundir bonapartismo com contra-revolução é um erro histórico de palmatória, o que não impediu a intelligentsia universitária lusíada de glosar, embevecidamente, este dislate de Lourenço, que passou a ser doutrina obrigatória de quem quisesse fazer carreira. E creio que ainda é.
A outra vítima de Lourenço e do seguidismo beato à sua frechada absurda foi, como dissemos, António Sérgio, a quem atacou a razão, para maior glória exclusiva da intuição Bergsoniana e a quem acusou de não ter ideias inocentes e virgens, limitando-se a atacar ideias de outros. Esta segunda catilinária é tão absurda, tão desconhecedora do que tenha sido todo o progresso do conhecimento científico e filosófico e todo o percurso da arte, desde tempos imemoriais até hoje, que, mais do que surpreender-me tê-la Lourenço emitido, choca-me tê-la o meio universitário aceite durante tantas décadas. A ciência tem avançado precisamente por aquilo que alguém, referindo-se a Bertrand Russell, apelidou de “mente insubordinada” A ciência não nasce, virgem de influências, nas mentes inocentes e descontaminadas do cientista. Copérnico, Kepler e Galileu opuseram o heliocentrismo (o Sol, como centro do sistema solar) ao geocentrismo de Ptolomeu (a Terra, como centro desse sistema). O cientista alimenta-se dos erros ou insuficiências dos que o precederam. Newton, muito provavelmente, o maior cientista de todos os tempos, não hesitou em proclamar: “Se cheguei até aqui, foi porque me apoiei no ombro de gigantes”, gigantes que sabiam menos do que ele, mas sem os quais ele não teria feito o que fez. Grande e admiravelmente abrangente como era, a macro-física de Newton partiu, por sua vez, os dentes quando se chegou ao estudo do comportamento das partículas. Aí, o determinismo sumptuário de Newton teve de dar lugar às hipóteses não deterministas dos físicos quânticos. Nem estes ficaram diminuídos por estarem só a opor-se a Newton, nem este ficou diminuído por a sua física não chegar para sondar a incerteza das partículas. Foi o mesmo Newton quem afirmou: “Nenhuma descoberta foi feita sem um palpite ousado.” Esse palpite é “ousado” precisamente porque pode estar a pôr em causa uma hipótese até aí aceite. E não é por assim surgir, isto é, por oposição a outra hipótese anterior, que ela é menos meritória. A desqualificação de Sérgio por Lourenço foi, assim, totalmente inepta. Com a arte é a mesma coisa. Malraux disse-o de uma vez por todas, ao afirmar que nenhum quadro é descontaminado ou inocente: ele é sempre a resposta a outro ou outros quadros. Renoir ou Matisse respondem a Delacroix com uma pintura diferente e com propósitos diferentes. Mas teria sido pouco provável que se tivesse chegado a Picasso se Delacroix não tivesse existido.
Eduardo Lourenço temeu sempre a contradição, porque achava que a contradição diminuía o contraditado. Esqueceu-se de ir arejar as ideias com o grande Pascal, que dizia: “Nem a contradição é sinal de falsidade, nem a falta de contradição é sinal de verdade.” Fugiu de ser contraditado como da peste. Mas isso não lhe garante que a posteridade lhe diga que estava certo." Eugénio Lisboa ,03.03.2021

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