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Eugénio Lisboa, na RTP , em 21 de Abril de 2021 |
Assombro
Chegamos, depressa, ao fim da viagem,
atordoados, confusos e sós:
pouco aprendemos, ficámos na margem
de viver, de saber quem somos nós.
Tudo foi frágil , incompleto, escuro,
tudo nos fugiu, pouco iluminou
esta passagem fugaz; resta puro,
nosso espanto, que nada conspurcou.
Eugénio Lisboa, Acta est Fabula , Memórias-V- Regresso a Portugal(1995-2015), Outubro de 2015, Opera Omnia
É com este belo poema que
termina o V volume das Memórias de Eugénio Lisboa. Esperava o autor que fosse o
último, mas acabou por ser o antepenúltimo. As memórias exigiram-lhe mais dois
volumes que foram publicados em Fevereiro e Novembro de 2017.
A passagem fugaz,
o instante da vida de Eugénio Lisboa ficou
registado. E sobre o instante, ocorrem , com enfâse redobrado, as palavras de Octávio Paz: Faço mal em chamá-lo
fragmento, pois é um mundo completo em si mesmo, tempo único, arquetípico, que
já não é passado nem futuro, mas presente.
O que nos narra Eugénio Lisboa é , em si mesmo , um
mundo completo. O Assombro dominou–lhe a
vida. Começa na criança, residente num
bairro dos subúrbios de Lourenço Marques, a crescer ávida de curiosidade. Curiosidade que, desassombradamente,
a transforma em omnívoro leitor compulsivo
e num ímpar e exímio cultor de um espanto que resta puro até
ao presente, dia em que completa 91 anos.
O instante é o tempo do prazer, mas também o da morte, o dos sentidos e o da
revelação do mais além, continua Octávio Paz. De tudo isto nos fala Eugénio Lisboa na
sua obra memorialística, "Acta est Fabula", e nos dois volumes
de Diários, “Aperto Libro”, já publicados.
À medida que se estabelecem
laços com esses registos , vamos entrando
num mundo rico e fascinante. O memorialista ou o diarista
alarga-se por outros horizontes e vai produzindo verbetes ou entradas que são puros ensaios de uma
soberba profundidade. Acompanhando-o, concluímos , inequivocamente, que se trata de um precioso documento de quase um século e de um registo
singular de um homem culto, erudito e de uma grandiosa sensibilidade.
Independente, livre e
isento, não subscreve jargões nem professa credos, lançando, com inteligente acutilância, um olhar crítico a tudo o que lhe chega , a tudo o que o rodeia , a tudo o
que preenche a vida, ao mundo.
Assim , olha Agustina,
Saramago , Vergílio Ferreira, Gastão Cruz, Eduardo Prado Coelho, Eduardo Lourenço e outros mais , sem temor por ser uma voz diferente, fugindo
a unanimidade oca que se pratica no falso meio intelectual. Em
sentido oposto, extrai, com mestria , a grandeza de um Camilo, de
um Eça, de um Régio, de um Sena, de um Montherlant, de um Gide , de um Domingos Monteiro , de um David Mourão-Ferreira, de uma
galeria de grandes que são engavetados por um modismo tonto
e provinciano. E, em igual honestidade intelectual, não deixa de aplaudir novos
talentos que surgem e se vão
afirmando.
Mas não é apenas de
memórias que se constitui a produção literária de Eugénio Lisboa. Poeta, ensaísta,
crítico literário, o autor de “Acta est fabula” tem uma vasta e prolífera obra.
É um incessante escritor em permanente laboração. Desde o seu último aniversário, o nonagésimo, publicou dois novos livros. Um de Poesia e outro em magnífica e gostosa prosa, que é um excelente
breviário da Leitura, um forte alento para o despertar desse vício impune, um esplêndido cânone para o leitor relutante.
Com Eugénio Lisboa, nunca será possível esgotar-se, em nós, o prazer da descoberta
, da aprendizagem, do encantamento. Reforça e valida, em magnificência, as palavras de
Jorge Luís Borges: A verdade é que ninguém passa por nossa vida em vão. A
diferença é que algumas pessoas são possibilidades de felicidade, outras de
lições.
Eugénio Lisboa é tudo
isso. Acumula todas as possibilidades. E, por ser verdade, acabamos com um outro
poema, um soneto perfeito, retirado do seu último livro de poesia.
DA
NÃO EVIDÊNCIA DE TUDO
É tão estranha a vida. É tão estranha a morte.
É estranho que seja tudo tão estranho
e tudo cause, em mim, um tal desnorte,
que o assombro seja, em mim, tamanho,
que fico detido, explorando o espanto
de coisa nenhuma ser evidente!
Resta-me, então, digo eu, o canto
que amacia o que não é transparente!
Viver é assim não compreender,
que é a melhor forma de descobrir.
Se há virtudes no não entender,
se é bom forçar a porta, insistir,
contudo, a um mistério decifrado,
outro logo se apresenta fechado!
20.05.2020
Eugénio
Lisboa,
em congeminações de sempre, que a solidão da peste
agudiza!
Eugénio
Lisboa, in
“ poemas em tempo de peste”, Setembro de 2020, Guerra&Paz, Editores S.A.
Ao Eugénio Lisboa, o mais erudito intelectual português da actualidade, de quem o assombro de um imanente espanto jamais se extinguiu, apresentamos a nossa inacabada gratidão, em jeito de sentida embora sóbria homenagem.
Veja (AQUI) uma entrevista a Eugénio Lisboa