[ 1903]
Fábula
"Há entre os índios da América do Sul a seguinte lenda:
Dizem que no princípio Deus criou os homens de tal maneira que eles não precisavam de trabalhar, não precisavam de habitações , nem de roupas, nem de comida, viviam todos até aos cem anos e não conheciam quaisquer doenças.
Passou-se algum tempo, e quando Deus olhou para ver como os homens viviam, viu que eles, em vez de se alegrarem com a sua vida, cada qual preocupado apenas consigo próprio, andavam desavindos uns com os outros e tinham organizado uma vida com a qual não só não se alegravam, como a maldiziam.
Então Deus disse para consigo: isto é porque vivem separados, cada qual para si. E para que não fosse assim, Deus fez com que os homens não pudessem viver sem trabalhar - para não sofrerem com o frio e a fome, teriam que construir habitações , cavar a terra, cultivar e colher frutos e cereais.
O trabalho vai uni-los - pensou Deus -, um sozinho não consegue cortar e transportar a madeira e construir uma casa, sozinho não pode preparar as ferramentas, semear e colher, fiar, tecer e costurar roupas. Eles compreenderão que quanto mais unidos trabalharem , mais produzirão e melhor viverão. E isso há-de uni-los.
Passou mais algum tempo, e Deus veio uma vez mais ver como viviam os homens.
Mas os homens viviam pior do que antes. Trabalhavam juntos - não podiam deixar de o fazer - mas não em comum. Estavam divididos em pequenos grupos , e cada grupo procurava roubar aos outros o seu trabalho, e todos se estorvavam uns aos outros , gastavam tempo e forças na luta, o que era mau para todos.
Tendo visto que assim também não estava bem, Deus decidiu fazer com que as pessoas não conhecessem a hora da sua morte e pudessem morrer em qualquer momento. E anunciou-lhes isso.
Sabendo que qualquer um deles pode morrer em qualquer momento, pensou Deus, não vão, pelos cuidados da vida que pode acabar a qualquer momento, zangar-se uns com outros e estragar as horas de vida que lhes estão destinadas.
Mas não foi isso que aconteceu. Quando Deus voltou para ver como viviam agora os homens, viu que a vida deles não tinha melhorado.
Os mais fortes, aproveitando-se do facto de que as pessoas podiam morrer em qualquer momento, submetiam os mais fracos, matando alguns e ameaçando os outros de morte. E estabeleceu-se uma vida em que só os fortes e os seus descendentes não trabalhavam, e viviam entediados com a ociosidade. Os fracos trabalhavam para além das suas forças e sofriam por falta de descanso. Uns e outros receavam-se e odiavam-se mutuamente. E a vida dos homens tornara-se ainda mais infeliz.
Ao ver isto, Deus, para remediar as coisas, decidiu usar um último meio: enviou à humanidade toda a espécie de doenças, compreenderiam que os saudáveis tinham de ter pena dos doentes e ajudá-los para que , quando eles próprios adoecessem, os saudáveis os socorressem.
E Deus deixou outra vez os homens. Mas quando voltou para ver como eles viviam agora, viu que desde que ficaram sujeitos às doenças , a vida dos homens se tornara ainda pior. As mesmas doenças que, na ideia de Deus , deviam unir os homens , tinham-nos dividido ainda mais. Aqueles homens que obrigavam pela força os outros a trabalharem , obrigavam-nos também pela força a cuidar deles na doença e por isso não se preocupavam eles próprios com os doentes. E aqueles que eram forçados a trabalhar para os outros e a cuidar dos doentes , estavam tão extenuados pelo trabalho, que não podiam cuidar dos seus próprios doentes e deixavam-nos sem ajuda. E para que a vista dos doentes não perturbasse os prazeres dos ricos , criaram umas casas onde os doentes sofriam e morriam sem a simpatia daqueles que tinham pena deles , mas entregues nas mãos de pessoas contratadas, que tratavam os doentes não apenas sem piedade, mas até com repugnância. Além disso, como o maior parte das doenças era considerada contagiosa, receavam o contágio e não se aproximavam dos doentes e afastavam-se mesmo de quem tratava deles.
Então Deus disse para consigo: se nem mesmo este meio consegue levar os homens a compreenderem onde está a sua felicidade, deixá-los aprender à sua custa, pelo sofrimento. E Deus deixou os homens entregues a si próprios.
E deixados entregues a si próprios, os homens viveram muito tempo sem compreenderem que podem e devem ser felizes. Só nos últimos tempos alguns deles começaram a compreender que o trabalho não deve ser um espantalho para uns e uma escravidão para os outros , mas deve ser uma ocupação comum e feliz para todos, que una todas as pessoas; começaram a compreender que com a constante ameaça da morte para cada um de nós, a única coisa racional para qualquer pessoa consiste em passar alegremente , em concórdia e amor , os anos , os meses, as horas e os minutos concedidos a cada qual; começaram a compreender que a doença não só não deve ser motivo de divisão, mas , pelo contrário, deve ser motivo de amor e de união entre todos."
Lev Tolstoi, in Os últimos escritos (1882-1910), Relógio d'Água Editores, Lisboa, Setembro de 2018, pp.144,145, 146
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