sábado, 2 de janeiro de 2021

A Ideia de Europa


Fernando Pessoa, Café A Brasileira, Chiado,
Lisboa, Portugal

Café Deux Magots, Place Saint-Germain-des-Prés,Paris, France

Leio Steiner com frequência. É um dos meus "eleitos". Um escritor admirável que nos deixou uma magnífica obra. Tenho nas mãos o seu livro "A Ideia de Europa " que condensa uma extraordinária Palestra , proferida por George Steiner no Nexus Institute (Holanda). Uma palestra  que não deixa de ser um longo e esplêndido ensaio , que releio sempre com redobrado encanto. Neste tempo europeu, tomado por uma das maiores ameaças mortíferas, não resisti a transcrever alguns fragmentos que traduzem o espírito de uma Europa na ideia de George Steiner.

« A Europa é feita de cafetarias , de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de pessoa , em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados  pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés  de Copenhaga , onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo,  que é já um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve períodos  em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na América  do Norte , para lá  do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á  um dos marcadores essenciais  da « ideia de Europa».
O café é um local de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos, para o flâneur e o poeta ou metafísico  debruçado sobre o bloco de apontamentos.  Aberto a todos , é todavia um clube,  uma franco-maçonaria de reconhecimento político ou artístico-literário e presença programática.  Uma chávena de  café , um copo de vinho, um chá com rum assegura um local  onde trabalhar , sonhar, jogar xadrez ou simplesmente permanecer aquecido durante todo o dia.  É o clube  dos espirituosos e a poste-restante dos sem-abrigo.  Na Milão de Stendhal, na Veneza de Casanova, na Paris de Baudelaire, o café albergava o que existia de oposição política e de liberalismo clandestino.  Três cafés principais da Viena imperial e entre as guerras forneceram a agora, o locus da eloquência e da rivalidade, a escolas adversárias  de estética e economia política, de psicanálise e filosofia.  Quem desejasse conhecer Freud ou Karl Krauss, Musil ou Carnap, sabia perfeitamente  em que café procurar, a que  Stammtisch tomar lugar. Danton e Robespierre encontraram-se uma última vez  no Procope. Quando as luzes se apagaram  na Europa, em Agosto de 1914, Jaurès foi assassinado num café. Num café  de Genebra, Lenine escreveu o seu tratado sobre empiriocriticismo e jogou xadrez com Trotsky. 
Note-se as diferenças ontológicas. Um pub inglês e um bar irlandês têm a sua própria  aura e mitologias.   O que seria da literatura irlandesa sem os bares  de Dublin? Onde , a não existir  o Museum Tavern,  teria o Dr. Watson  encontrado Sherlock  Holmes? Mas estes estabelecimentos não são cafés. Não têm mesas  de xadrez,  não há jornais à disposição  dos clientes , nos seus suportes  próprios.  Só muito  recentemente o próprio café se tornou hábito público  na Grã-Bretanha, e mantém o seu halo italiano.  O bar americano  desempenha  um papel vital na literatura americana e em Eros, no carisma icónico de Scott Fitzgerald e Humphrey Bogart. A história do jazz é inseparável dele. Mas o bar é um santuário de luzes desmaiadas , muitas vezes de escuridão. Vibra com música, muitas vezes ensurdecedora. A sua sociologia e o seu tecido psicológico  são permeados pela sexualidade, pela presença - desejada , sonhada ou real  - de mulheres.  Ninguém redige  tomos fenomenológicos  à mesa  de um bar americano (cf. Sartre). As bebidas têm de ser renovadas, se o cliente  quiser continuar a ser desejado.  Há "seguranças " que expulsam  os  indesejáveis. Cada uma destas características  define uma ética radicalmente diferente daquela do Café Central ou do Deux Magots ou do Florian. " Haverá mitologia enquanto existirem pedintes ", declarou Walter Benjamim , um connaisseur  apaixonado e peregrino  de cafés.  Enquanto existirem cafetarias , a « ideia da Europa terá conteúdo.
(...) Com a queda  do marxismo na tirania bárbara  e na nulidade económica , perdeu-se um grande sonho  de - como Trotsky proclamou - o homem comum seguir as pisadas  de Aristóteles  e Goethe. Liberto de uma ideologia falida, o sonho pode, e deve, ser sonhado novamente.  É porventura apenas na Europa  que as fundações  necessárias  de literacia e o sentido da vulnerabilidade  trágica da condition humaine poderiam constituir-se como base. É entre os filhos frequentemente cansados , divididos e confundidos de Atenas  e de Jerusalém que poderíamos regressar à convicção de que  « a vida não reflectida» não é efectivamente digna de ser vivida. 
Pode ser que estas palavras sejam insensatas, que seja demasiado tarde . Espero que não, só porque estou a dizer estas palavras na Holanda, onde Baruch Espinoza viveu e pensou.»
George Steiner, in A Ideia de Europa, Gradiva Publicações, S.A ., pp. 26,27 , 28, 55

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