segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Nas dobras do tempo


Ponta Delgada - 12. Janeiro. 87
"É penoso chegar aos finais do século sem ver um aceno decidido de aurora a colorir o futuro colectivo. Crendices, intolerâncias, paixões, continuam as dos homens de todos os tempos . Tal como sempre, quem não é como toda a gente não tem direito de cidade. Quem tropeçou fica estendido no chão.  Quem procura pão recebe pedras. Só em certos dias do calendário litúrgico se finge acreditar que os humildes  deviam herdar a terra. Nos restantes trezentos sessenta e tal ninguém aceita que o sol é para todos.
Por isso, às vezes , penso : vou recriar o mundo e descansarei ao sétimo dia -  se ainda tiver sete dias para viver. "

(...)

Ponta Delgada - 19. Janeiro. 87

"Venho de longe. De um tempo de que me não lembro -  submerso e secreto. Venho vestido de mitos e de carismas inúteis. O peito aberto de promessas nado-mortas. A boca torcida das coisas negadas.
Mas sei o suficiente da história acontecida para me dar conta de que o melhor  foi ter nascido - apesar de tudo. Sei, por exemplo, dos momentos de vontade , discernimento  e amor  que tornaram  possível  fazer brotar rios caudalosos de modestas nascentes. E sei do deslumbramento dos caminhos cruzados  mesmo que demorem o tempo de um clarão. E também sei do valor humano do sofrimento - condição de um florir por dentro os nossos descampados. Ocasião de perguntas  e de respostas  que de outro modo ficariam sufocadas nas dobras do limbo primitivo
Por tudo isto bendigo ( apesar de tudo) o momento remoto e solene em que Pitecantropus se tornou Erectus..."
Fernando Aires , in " Era uma vez o Tempo - Diário (1982 - 2010) "Editora Opera Omnia, Setembro 2015,  pp. 151, 152

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