Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Álvaro de Campos, "Poesia"
Nessas férias , fui aprender dactilografia antes do início da saída para a Praia. Todos nós tirámos o curso de dactilografia nos anos em que não tínhamos exames escolares. Os meus pais achavam importante adquirirmos esse conhecimento. E tiveram razão. Os teclados vieram para ficar. As máquinas mudaram , mas eles sobreviveram. Mais tarde , iniciei também um curso de estenografia que nunca utilizei. O método de ensino de dactilografia foi evoluindo com o tempo. Enquanto, eu aprendi , decorando o lugar de cada tecla, mas a ver o teclado, os meus irmãos mais novos aprenderam ao som de música e sem olhar para o teclado. Vê-los a escrever, era como imaginar um pianista a tocar uma bela sonata de Beethoven.
Póvoa do Varzim |
As férias grandes eram sempre o tempo do Mar. Ele esteve e estará presente em todas as férias . Todos os meus irmãos gostavam de praia. E nesse tempo, existia já a profilaxia do iodo como uma necessidade para um saudável crescimento e desenvolvimento.
Praia do Guincho ( Cascais) |
Praia da Ursa |
Cabo da Roca |
Havia, também, outras diferenças entre estas duas costas. A Costa do Sol tinha águas mais calmas e amenas; a Costa de Sintra, além de mais agitação marítima, as manhãs começavam invariavelmente com uma camada de fina neblina que enganava aquele que chegasse à procura de um quente banho de sol. Era sempre incerto o tempo estival, nesta zona. O dia começava e terminava com uma camada nebulosa e húmida, apesar de, pelo meio, ter estado um verdadeiro dia de verão. Emergia, nesta paisagem, a memória dos meus dias de Póvoa de Varzim. Para mim, era a costa norte, a costa de Sintra, que me desafiava. O arrebatamento adormecido eclodia sempre que avistava aquele mar. O êxtase de menina vinha naquela voz cava a aspergir as palavras mágicas da nossa sempiterna união. Agora não era apenas o deslumbre, era eu sem poder viver longe daquele chamamento. Creio que tenho revelado quanto preciso e gosto deste enamoramento com o Mar. As minhas rugas ainda hoje, 2017, tecem loas infindas ao seu encanto.
Com um grande areal, a Praia Grande era um outro destino que se podia optar. Bastava sair , no Rodízio, junto à bomba de gasolina, onde existia a bifurcação das duas estradas que davam acesso respectivamente à Praia das Maçãs ou à Praia Grande.
Praia Pequena |
Praia Grande |
Os banhos eram , por vezes, uma cerimónia de grande arrojo. A água fria nem sempre se deixava enrolar nos nossos corpos, conforme desejávamos. Havia momentos e dias em que o mar se encrespava e o perigo era real. Mas a maresia que se soltava enchia o nosso olfacto e refrescava os nossos sentidos.
Acode-me o poema de rememoração de Miguel Torga que julgo assentar bem aqui: Sim, a vida não presta./Mas foi bonita a festa/Da mocidade./O corpo são, a alma sã e todos os sentidos/Na sua virgindade/Castamente despidos.
Lembrá-lo, agora, dá não sei que paz./Esta paz medular/De já ter sido./E ter sido capaz/De uma hora solar/Gravada a fogo no tempo perdido.
Maria José Vieira de Sousa, in O livro que já escrevi, Maio de 2018
Todo o sonho sonhado é uma bênção do passado, de um passado tomado outrora como presente. Talvez o que não sonhámos, não desejámos, ou tivéssemos desejado e não o tornássemos real, e o não que outros o sonharam, o desejaram por nós, muito antes de nós sê-lo-ia sonhado sem nós mesmos. E isso nos conforta, a alguns de nós, de certo modo, pois o que foi houvera de ter sido e exerceu-se. Que seria a nossa memória e essa imensa bolsa de afectos exercidos, e rejeitados por vezes, se não houvesse cabimento para eles?...
ResponderEliminarLi outrora, o que outros talvez leram por mim, e me contaram. Até chegar ao fim da linha com um saldo perfeita e escandalosamente negativo... Que li eu, então?... Nada!... Nada que não tivesse hipoteticamente ter sido eu a escrever, ou a viver antes de ter escrito... E posto isto, nada foi escrito, nada apareceu à luz do dia como de sombra nocturna se tratasse...
ResponderEliminarVêm estas soltas e deletérias e nunca inseridas em lugar algum, estas divagações, minhas divagações, das que não se podem levar a sério, a propósito desse belo livro que a Dr.ª Maria José com o seu talentoso saber escreveu e deixou escrito para ser lido... Espero que a bonomia da sua maravilhosa alma, e o humor necessário não lhe falte, ao ler estes meus toscos apontamentos e me perdoe o atrevimento, o atreviemnto de quem muito a admira e teve por sinalética andante e insuspeita a oportunidade de a ler, de ler excertos do (seu) "O livro que já escrevi"... Muitos parabéns! Cumprimentos a seu marido. E obrigado por tudo!
ResponderEliminarDivagações que são bem-vindas e que ilustram, com agudo interesse, as palavras em alvo.
ResponderEliminarA Varela Pires ficaremos sempre gratos pela sua activa leitura.
É um prazer tê-lo entre nós.