sexta-feira, 17 de maio de 2019

Memórias

                                    
                                   Tento reconstruir na minha imaginação
                                  Quem eu era e como era quando por aqui passava

                                                     Álvaro de Campos, "Poesia"

Nessas férias , fui aprender dactilografia antes do início da saída para a Praia. Todos nós tirámos o curso de dactilografia nos anos em que não tínhamos exames escolares. Os meus pais achavam importante adquirirmos esse conhecimento. E tiveram razão. Os teclados vieram para ficar. As máquinas mudaram , mas eles sobreviveram. Mais tarde , iniciei também um curso de estenografia que nunca utilizei. O método de ensino de dactilografia foi evoluindo com o tempo. Enquanto, eu aprendi , decorando o lugar de cada tecla, mas a ver o teclado, os meus irmãos mais novos aprenderam ao som de música e sem olhar para o teclado. Vê-los a escrever, era como imaginar um pianista a tocar uma bela sonata de Beethoven.
Póvoa do Varzim
Em Lisboa, as praias, que tínhamos para escolher, eram várias. A Póvoa de Varzim deixara de estar ali a acenar-nos. Ficara lá, longe, para se fazer  pertença da  minha infância. Fechara-se esse capítulo em que se dera o achamento do Mar. Tenho-o ainda guardado dentro de mim. Questiono-me por que recordamos tão intensamente os momentos que vivemos na infância?!  Por que razão me tenho alargado e revivido com o mesmo encantamento todo esse tempo ? Dediquei-lhe um grande número de páginas neste relato. Não sei explicar, apenas o sinto tão presente, tão nítido que quase o reescrevo com os dedos e o coração de criança. Não de uma criança qualquer , mas de uma entre outras também  felizes.
As férias grandes eram sempre o tempo do Mar. Ele esteve e estará presente em todas as férias . Todos os meus irmãos gostavam de praia. E nesse tempo, existia já a profilaxia do iodo como uma necessidade para um saudável crescimento e desenvolvimento.
Praia do Guincho ( Cascais)
Praia da Ursa
Cabo da Roca
Lisboa oferecia-nos duas costas : aquela que se designava a Costa do Sol que apanhava a linha do Estoril-Cascais, alargando-se até ao Guincho e  a outra costa , a Costa de Sintra. Esta última de águas muito batidas e frias , algumas com enseadas deslumbrantes, mas quase inacessíveis pelas arribas em penhascos, como a Praia da Ursa , a Praia do Abano  junto ao Cabo da Roca e, mais para norte,  a Praia da Samara, a Praia da Vigia ou a Praia da Aguda.
Havia, também, outras diferenças entre estas duas costas. A Costa do Sol tinha águas mais calmas e amenas; a Costa de Sintra, além de mais agitação marítima, as manhãs começavam invariavelmente com uma camada de fina neblina que enganava aquele que chegasse à procura de um quente banho de sol.  Era sempre incerto o tempo estival, nesta zona.  O dia começava e terminava com  uma camada  nebulosa e húmida, apesar de, pelo meio, ter estado um verdadeiro dia de verão. Emergia, nesta paisagem, a memória dos meus dias de Póvoa de Varzim. Para mim, era a costa norte, a costa de Sintra, que me desafiava. O arrebatamento adormecido eclodia sempre que avistava aquele mar. O êxtase de menina vinha naquela voz cava  a aspergir as palavras  mágicas  da nossa sempiterna  união. Agora não era apenas o deslumbre, era eu sem poder viver longe daquele chamamento. Creio que  tenho revelado quanto preciso e gosto deste enamoramento com o Mar. As minhas rugas ainda hoje, 2017, tecem loas infindas ao seu encanto.
As praias mais procuradas eram a Praia Grande e a Praia das Maçãs. Ficavam no sopé da serra de Sintra. Muitas famílias as procuravam pela largueza e pelo conforto de estar a poucos quilómetros de Lisboa. Para se aceder à praia , além do comboio que partia do Rossio, em Lisboa , havia um eléctrico à espera, junto à estação de  Sintra, que seguia até à Praia das Maçãs. Era um magnífico percurso através da bela paisagem do Parque Natural de Sintra e com passagem por castiças e afamadas povoações  como Galamares,  Colares e Banzão. Uma viagem quase encantada e familiar. Parava-se em muitos lugares. O condutor esperava os passageiros que se atrasavam e permitia que se saltasse dos lugares para  distender as pernas. Em Colares, chegava a parar para se poder comprar os muito procurados e saborosos pêssegos-rosa de Colares. O eléctrico não tinha janelas, proporcionando um contacto directo com aquela fantástica natureza. Natureza que se vestia de um formoso  e singular verde, em paleta de várias tonalidades para fazer  de Sintra um dos mais belos recantos de Portugal.
Com um grande areal, a Praia Grande era um outro destino que se podia optar. Bastava  sair , no Rodízio, junto à bomba de gasolina, onde existia a bifurcação das duas estradas que davam acesso respectivamente à Praia das Maçãs ou à Praia Grande.
Quem quisesse podia apanhar o autocarro ou ir a pé , atravessando a ponte sobre a  Ribeira de Colares, até à Praia Grande, e desfrutar da vista do imenso mar que se deixava ver logo que se subia a encosta . Lá, em baixo, numa pequena enseada rochosa , dormia a Praia Pequena que também foi minha cúmplice por diversas e frequentes visitas. Quando passei a viver na outra Quinta , na Serra de Sintra, era um refúgio, nos dias mais ventosos, para um banho estimulante.  Mais tarde, serviu para os meus filhos se espraiarem também.
Praia Pequena
Praia Grande
A Praia Grande era , então, extensa e simpática a quem quer que chegasse. Permitia lugar para todos. Não se confundia com as praias da linha do Estoril, apinhadas de gente , logo que as férias chegavam.
Os banhos eram , por vezes, uma cerimónia de grande arrojo. A água fria  nem sempre se deixava enrolar nos nossos corpos, conforme desejávamos. Havia momentos e dias em que o mar se encrespava e o perigo era real. Mas  a maresia que se soltava  enchia  o nosso olfacto e refrescava os nossos sentidos.
Acode-me  o poema  de rememoração  de Miguel Torga que julgo assentar bem  aqui: Sim, a vida não presta./Mas foi bonita a festa/Da mocidade./O corpo são, a alma sã e todos os sentidos/Na sua virgindade/Castamente despidos.
Lembrá-lo, agora, dá não sei que paz./Esta paz medular/De já ter sido./E ter sido capaz/De uma hora solar/Gravada a fogo no tempo perdido.
Maria José Vieira de Sousa, in O livro que já escrevi, Maio de 2018

4 comentários:

  1. Todo o sonho sonhado é uma bênção do passado, de um passado tomado outrora como presente. Talvez o que não sonhámos, não desejámos, ou tivéssemos desejado e não o tornássemos real, e o não que outros o sonharam, o desejaram por nós, muito antes de nós sê-lo-ia sonhado sem nós mesmos. E isso nos conforta, a alguns de nós, de certo modo, pois o que foi houvera de ter sido e exerceu-se. Que seria a nossa memória e essa imensa bolsa de afectos exercidos, e rejeitados por vezes, se não houvesse cabimento para eles?...

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  2. Li outrora, o que outros talvez leram por mim, e me contaram. Até chegar ao fim da linha com um saldo perfeita e escandalosamente negativo... Que li eu, então?... Nada!... Nada que não tivesse hipoteticamente ter sido eu a escrever, ou a viver antes de ter escrito... E posto isto, nada foi escrito, nada apareceu à luz do dia como de sombra nocturna se tratasse...

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  3. Vêm estas soltas e deletérias e nunca inseridas em lugar algum, estas divagações, minhas divagações, das que não se podem levar a sério, a propósito desse belo livro que a Dr.ª Maria José com o seu talentoso saber escreveu e deixou escrito para ser lido... Espero que a bonomia da sua maravilhosa alma, e o humor necessário não lhe falte, ao ler estes meus toscos apontamentos e me perdoe o atrevimento, o atreviemnto de quem muito a admira e teve por sinalética andante e insuspeita a oportunidade de a ler, de ler excertos do (seu) "O livro que já escrevi"... Muitos parabéns! Cumprimentos a seu marido. E obrigado por tudo!

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  4. Divagações que são bem-vindas e que ilustram, com agudo interesse, as palavras em alvo.
    A Varela Pires ficaremos sempre gratos pela sua activa leitura.
    É um prazer tê-lo entre nós.

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