Mário
Quintana
Répétons
inlassablement qu’un grand écrivain n’est jamais grand par sa forme seulement, mais par ce qu’il y
met, c’est-à-dire par ce qu’il est.
Henry de Montherlant
“Quando as férias grandes começavam, tínhamos, à
nossa frente, uma vasta planície de tempo a preencher, mesmo que fosse a não
fazer nada.[…] Mas onde eu gastava o tempo todo era, sobretudo, especado frente
à montra da " Minerva Central " ( propriedade de outro Carvalhinho),
a namorar os livros que não fazia ideia de como haveriam de ser meus, um
dia...Eram títulos tentadores, da " Portugália", da " Inquérito", da "
Gleba", da " Minerva". Poça, não ter eu um décimo da massa que
tinham os Granchas, os Carvalhinhos, o raio que os partisse a todos! E, a esses,
se calhar, nem sequer lhes apetecia ler aqueles calhamaços: O Moinho à
Beira do Rio, Guerra e Paz, O Retrato de Dorian Gray, Trovoada à Esquerda,
Villette e tantos outros, que me desafiavam... Palavra que não era
inveja - era só um bocado de ferro, por a distribuição das riquezas estar tão
mal amanhada: dava Deus nozes a quem não tinha dentes e aos que os tinham - e
bem afiados - fazia-lhes um grande manguito! Como dizia, poça! “
Acabámos de extrair do
volume I, de “Acta Est Fabula”, de Eugénio
Lisboa, este vivo e pequeno texto para
saudar o seu 89º aniversário, que se celebra hoje. Não poderemos afirmar, com total
certeza, que, do conjunto dos sete volumes que compõe as suas Memórias, é este o que mais apreciou escrever.
Estamos, porém, seguros do seguinte: este é
o que mais nos tocou . Será, pois, com este primeiro volume memorialístico de Eugénio Lisboa, que celebraremos o seu aniversário, no rasto da criança que ele foi.
E quando o afirmamos , damos eco à emoção que nos tomou, quando nos confrontámos com uma criança, cujo
sonho era ter uma casa grande, com paredes forradas a madeira, pejadas de
livros. Um sonho singular no coração de
uma criança.
Li muito, mas também me fartei de sofrer por causa do que não li, nessa altura : ficavam-me os olhos nas montras da “ Minerva” e da “Progresso”, onde chamavam por mim […] ,livros que só mais tarde viria a ler.
Li muito, mas também me fartei de sofrer por causa do que não li, nessa altura : ficavam-me os olhos nas montras da “ Minerva” e da “Progresso”, onde chamavam por mim […] ,livros que só mais tarde viria a ler.
[…] Quantas vezes não desci, do Alto –Mahé até
à baixa, para ir namorar as montras das livrarias , praticando aquilo que os
ingleses chamam " window shopping” ( “
comer com os olhos”, dizemos nós…) . Não tinha
dinheiro, até ao fim do 7º ano do
liceu, nunca tive dinheiro de bolso.
Nunca conheci aquilo, que outros mais abastados , recebiam : uma “semanada”.
Os livros da George Eliot, do Dickens ,
nas monumentais edições da “Portugália”
e da “Inquérito”, ficavam completamente fora do meu alcance, por mais que os
namorasse. Lembro-me , como se fosse hoje
- agora! – de uma tarde de domingo, em que saí do “Scala”, depois de ter visto, emocionado,
uma versão cinematográfica do romance de Dickens “ A Tale of Two Cities”, com o
Ronald Colman, no papel de Sydney Carton. A caminho da Praça MacMahon, onde ia apanhar
o machimbombo para regressar a casa, passei pela Livraria Progresso e vi, na montra , acenando-me, uma edição
do romance “Grandes Esperanças”, de Dickens , com uma cinta, que
gritava despudoradamente “ Dickens, o
grande Dickens, o maior romancista
inglês de todos os tempos.” Fiquei siderado: acabara de ver um romance daquele autor, transportado para o écran do “Scala”,
e agora , ali, aquele “chamamento”. Era incrível. Nunca me doeu tanto não ter dinheiro para ir,
no dia seguinte, àquela livraria, para poder corresponder a um apelo tão
lancinante.
Apelo feito de outros apelos a desafiar a fértil e ávida curiosidade do adolescente Eugénio Lisboa. E era pelos livros que viajava e conhecia mundo , naquele recôndito bairro (Alto-Mahé) da cidade de Lourenço Marques , em Moçambique. Foi europeu, americano, russo em África. Os livros abriam-se-lhe e traziam-lhe a descoberta da vida. Amou pela primeira vez com Stendhal, em "Le rouge et le noir": Madame de Rênal entrou no seu coração para sempre. Um encantamento que nunca deixou de sentir e celebrar.
E quando, aos
dezassete anos, tem de abandonar a
cidade capital da sua memória , para
prosseguir estudos no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, a emoção da
despedida eclode: Fora ali que tudo
aprendera , fora ali que fizera as “grandes
leituras”, fora ali que descobrira Florença, Paris , a América de Hemingway, de
Saroyan, de O’Neill, fora ali que explorara o mundo dos antigos, pela mão de Plutarco e de Sienkiewicz!
Fora ali que, sem aviso prévio , eu encontrara
e amara a Senhora de Rênal, saída do romance de Stendhal, para entrar na
minha vida – e nela ficar para sempre! Aquele mundo estava cheio de vozes e de
segredos. Como poderia eu escolher deixá-lo? Fora ali que eu me banhara , com o
“Nero”, nas águas grandes e temerosas do Índico. É verdade que, como referi ,
entre o tesouro das emoções “locais” e o desejo e quase “dever” de ir à
aventura , eu optara por esta. Mas, agora, chegado o momento decisivo, a
avalanche emotiva ameaçava tudo
submergir.
Decisão que fez do jovem Eugénio Lisboa , um homem do mundo. O espanto, a curiosidade de uma criança, que se iniciou nos livros, marcaram-lhe o futuro. Eugénio Lisboa é, na actualidade, o mais erudito e apurado cultor de uma escrita singular .
Autor de uma vasta e multifacetada obra, capturou-nos ,ao longo dos anos. E, de chamamento em chamamento, seduziu-nos nas múltiplas livrarias. Cada livro é sempre um apelo irrecusável.
Acaba de publicar
dois livros : Uma conversa Singular , sumptuoso conjunto de ensaios, e o primeiro volume de um grande
registo diarístico: Aperto Libro. Um
outro tomo, deste novo magnum opus, está no prelo.
Eugénio Lisboa deu
forma ao sonho de criança. Com criteriosa selecção, encheu de livros, a sua casa. Possui uma biblioteca com mais de
30.000 livros , que doou à Biblioteca da
Universidade de Aveiro, onde foi Professor.
“Sou todos os
livros que li , todas as pessoas que conheci, todos os lugares que visitei,
todas as pessoas que amei.”, confidenciava Jorge Luis Borges. Lendo a ímpar
obra de Eugénio Lisboa, acabamos por concluir que o autor de “Ficções” tem razão.
Se o próprio Eugénio Lisboa nos diz que “ Somos muito do que lemos” , não
poderemos deixar de lhe prestar homenagem e apresentar o nosso mais profundo
agradecimento .
A Eugénio Lisboa,
as nossas celebradas felicitações por este 89º aniversário.
Bem-haja!
Bem-haja!
É sempre com muita emoção, e profundo respeito, que recapitulamos a obra de Eugénio Lisboa, em especial as suas memórias!.. Dá-se o caso que estivemos - pelo pensamento... - muito perto de quase tudo o que ele escreve. A contemporaneidade e o espaço português têm destas coisas!... É igualmente com enternecido olhar e ansiosa curiosidade que renovamos essa leitura diarística e confessional, a mesma que nos envolve num fraternalismo imensamente doce e cúmplice, e nos torna mais saudosos de um tempo inolvidável, e tão chegado... e mais agora, neste seu querido 89º Aniversário. Parabéns, Eugénio Lisboa! Aquele abraço que nos prolonga este saudosismo incorrigível, meu Mestre e amigo!
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