por Nélida Piñon
"Desde sempre ansiei por materializar as pequenas utopias do quotidiano que tinham por fim esclarecer as noções de pátria , de língua. Os conceitos que dão existência aos sentimentos , `cartografia da vida, impondo directrizes inaugurais.
O país do nascimento se faz de contradições e sombras. A língua, que o custeia , fala nos estábulos, nas feiras , nos prostíbulos, no território da cama e do berço, na jazida da paixão, locais que difundem esperança, honra, sangue derramado. Uma língua na qual se espelham as faltas humanas, o fardo histórico que nos circunda.
Tais considerações se devem a ser eu filha da imigração. Do projecto imigratório de quando os galegos , estabelecidos no Rio de Janeiro, eram fantasmas do exílio. De quando os avós, já instalados na Vila Isabel, enquanto os pais , em Botafogo, ofereciam-me semanalmente a mesa farta.
Ter nascido de uma família imigrante propiciou.me entender as perspectivas da Europa no tempo do avô e do pai, que levaram a expulsar seus nacionais de casa. Questionei cedo qual teria sido o destino do continente europeu se não tivesse despejado os milhares de famintos nas terras americanas. O quanto esta refinada Europa se nutriu do imaginário americano, do ouro e da prata, dos tesouros impensáveis , das batatas, dos tomates, do chocolate, dos mitos maia, inca , tupi-guarani, da narrativa e dos códices das civilizações autóctones.
Escondida às vezes nos recantos da casa dos avós , nunca os vi sangrar. Recolhiam às pressas alguma eventual gota de suor e sangue. Minha mãe, Carmen, saiu a eles . Jamais a ouvi confessar o que era do âmbito da intimidade. Não admitia haver sofrido alguma desilusão que lesara o coração.Recolhia-se no próprio ser , que albergava com severidade. Seu amparo era subsistir próximo dos que amava. Não aceitava confidências, difundir segredos. Suspeito que o corpo para ela era sagrado. Até agora os efeitos destas vidas se irradiam em mim.
Volto à Europa. Pergunto que critério adoptar para responsabilizá-la pelas falhas existentes na América. Se as carências civilizadoras do nosso continente deviam ser creditadas no epicentro europeu. Aos povos colonialistas que exerceram um domínio moralmente vergonhoso em África e nas Américas, cuja crueldade não merece esquecimento histórico.
Questiono igualmente se com o vencimento dos anos não é o momento de nossos próprios países responderem pelas mazelas americanas. E se não exercemos essa autocrítica é porque seguimos sendo parte dos despojos desta Europa culta e colonialista.
Sou mestiça e gosto. Convivo com as elites brasileiras e as recrimino vivamente. Audazes no jogo da dissimulação, dos equívocos , eu não os perco de vista. Mas surpreendo-me com seus raros actos de grandeza. São eles que aliançam, em conjunto com as classes populares , que minhas raízes brasileiras prosperaram a partir do bairro Vila Isabel onde nasci."
Nélida Piñon, in Uma Furtiva Lágrima , Círculo de Leitores, Fevereiro de 2019, pp 101-103
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