Por Eugénio Lisboa
"A mais violenta forma de censura ao livro é a sua destruição física: o livro não é, nesse caso, apenas proibido, ou seja, retirado da circulação – é aniquilado, queimado, de preferência, na praça pública, para exemplo e proveito.
Como já dissemos, os nazis não foram os primeiros a queimar livros, mas souberam fazê-lo com pompa e circunstância. Deram início às suas acções purificadoras, em 1933, quando uma parada de milhares de estudantes, munidos de tochas, deitaram fogo a uma pilha de 20 000 livros, na Universidade de Berlim, perante o Ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, que, simultânea e elegiacamente, proclamava: “A alma do povo alemão pode exprimir-se. Estas chamas… iluminam… o fim de uma era e acendem uma nova.”
Felizmente, nem todos os seres humanos são igualmente inclinados à queima de livros. No outro extremo, poderíamos até citar o filósofo Montaigne, autor dos famosos Ensaios, que, perguntado sobre o que faria, se lhe dessem a escolher entre queimar os seus filhos e queimar os seus livros, respondeu candidamente, que preferiria queimar os filhos. Il y en a de toutes les couleurs.
Seja como for, queimadores de livros houve-os em todos os tempos e de todos os formatos. Mas o pior deles todos talvez tenha sido o primeiro imperador da China, Shi Huang Ti (250 – 210 a. C.), que mandou enterrar vivos 460 académicos e queimar todos os livros existentes no reino, excepto um exemplar de cada um, que mandou depositar na biblioteca real. Mas, mesmo estes, planeou destrui-los antes de morrer, raciocinando que, se todos os registos desaparecessem, a história começaria com ele. De tal modo se tornou odioso com este seu procedimento, que várias gerações, após a sua morte, se vingaram conspurcando-lhe o túmulo.
Houve vários mártires célebres entre os autores de livros: desde Sócrates, que aliás não deixou um único livro, limitando-se a exprimir os seus pensamentos na praça pública, sendo por isso obrigado a morrer, tomando cicuta; passando por Lucano, poeta romano, a quem Nero, ciumento da sua poesia, ordenou que se suicidasse; ou pelo poeta persa Amra Taraja, enterrado vivo por ter escrito um poema em que criticava o rei, a lista dos mártires é interminável. Alessandro Cagliostro apodreceu e morreu numa prisão romana por ter escrito obras consideradas heréticas; o poeta francês André Chénier foi guilhotinado por ter escrito contra o Terror; consta também que o romancista russo Maxim Gorky que, no entanto, teve funeral nacional, foi envenenado por ordem de Staline; John Milton, o autor de Paradise Lost, escapou por pouco de subir ao cadafalso, por ter escrito contra o direito divino dos reis (valeu-lhe alguns amigos terem intercedido a seu favor); Boris Pasternak viu-se obrigado a não ir a Estocolmo receber o Pémio Nobel, sob risco de o não deixarem regressar à Rússia; e Alexander Solzenitsyn viu-se forçado ao exílio na boa esteira de Eurípedes, Aristóteles, Ovídio, Dante, Villon, Voltaire e Victor Hugo.
O fogo purificador está sempre vigilante, por todo o lado: porque, se Hemingway, por exemplo, viu os seus livros queimados pelos nazis, As Vinhas da Ira, de Steinbeck, não precisaram de sair dos Estados Unidos para sofrerem igual tratamento: em 1939, o livro foi queimado pela Biblioteca Pública, de St. Louis, no Missouri. Dizia Milton que quem destrói um livro, destrói a própria Razão e mata a imagem de Deus. Assassinos destes não terão faltado, na história do homem na Terra.
(P. S. – Para maior aprofundamento e mais extensa e variada informação sobre estas picardias do ser humano, aconselharia o livro The Literary Life & Other Curiosities, de Robert Hendrikson, na Penguin Books.)"
Eugénio Lisboa, em Ensaio publicado na Revista Ler nº 147, Outono 2017
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