Cada um tem o destino universal de fazer consigo mesmo o
modelo de mais uma estátua humana. E esta fabrica-se apenas com íntimo pessoal.
O nosso íntimo pessoal é inatingível por outrem. E é este o
fundamento de toda a humanidade, de toda a Arte e de toda a Religião. O nosso
íntimo pessoal é de ordem humana, estética e sagrada. Serve apenas o próprio. E
o seu único caminho. O melhor que se pode fazer em favor de qualquer é
ajudá-lo a entregar-se
a si mesmo. Com o seu íntimo pessoal cada um poderá estar em toda a parte,
sejam quais forem as condições sociais, as mais favoráveis e as mais adversas.
Sem ele, nem para fazer número se aproveita ninguém.
A individualidade e a personalidade são florescências desse
invisível do nosso ser a que chamamos o nosso íntimo. Tudo quanto de bom ou de
mau, de óptimo ou de péssimo exista em cada qual nasceu com ele e formou-se secretamente,
intimamente, a despeito de todo o aspecto que lhe venha do exterior, de toda a
educação e acção alheias.
O papel da sociedade é imediatamente mais evidente sobre
cada pessoa do que o atropelado movimento das gerações que a antecederam e lhe
determinaram o seu sangue, mas aquela não vale esta. Que uma pessoa tome a seu
cargo dirigir o próprio destino que lhe coube, é com ela. Que seja a sociedade
quem se proponha dirigi-lo, é ingenuidade. O mais que neste caso poderá a
sociedade é eliminar esse destino pessoal. A sociedade só tem que ver com
todos, não tem nada que cheirar com cada um!
Cada um nasce já bem ou mal educado. E depois de nascido bem
ou mal educado, tudo quanto se faça pode pouco para imediatamente. Vereis
gentes humildes, analfabetos, simples e perfeitamente bem educados, sabendo
medir as distâncias entre pessoas, sem se atrapalharem com as escalas sociais,
e perfeitamente uníssonos com o seu próprio caso pessoal. Vereis, por outra,
gentes de opinião, passados superiormente por cursos, e, uma vez na altura
oficial, não saberem distinguir pessoas de formigas, e outras vertigens dos
sítios altos, e, o que é pior, de costas voltadas para si mesmos como para o
diabo. Isto é, aquilo
em que eles poderiam merecer o nosso interesse é precisamente ao que eles voltaram
as costas!
O autor destas páginas também desenha e não sabe expressar
por palavras a extraordinária impressão que recebe sempre que copia o perfil de
qualquer pessoa. A natureza chega tão complexa às feições de cada um, que
somos forçados a não poder aceitar cada qual resumido ao lugar em que a
sociedade o põe. Através dos séculos, uma linha única e incessantemente seguida
acabou por tornar inimitável o perfil de cada um. Essa linha passa agora desde
o alto da testa até por baixo do queixo,
e às vezes lembra a de outros, mas é intransmissível.»
Almada Negreiros, in " Nome de Guerra", Edições Ática
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