"O gigantesco
desenho da ponte se lhe debuxava agora à esquerda, com o seu arco imenso meio
afogado no nevoeiro, que adensara. O vento caíra. E como o crescente da lua se
desvanecia no céu brumaceiro, de luar não havia senão uma frialdade
semiluminosa, muito vaga, esparsa. Na grande mancha negra, lodosa, que era
agora o Douro, retorciam-se como longos parafusos em brasa as luzes de Vila
Nova de Gaia. Reflectiam outras luzes espalhadas aqui, ali, além, pequeninas,
ao mesmo tempo esfumadas e nimbadas pela névoa. Junto ao cais, quase aos pés de
Lélito, mais se adivinhava do que distinguia na faixa tenebrosa uma complicação
de vultos de barcos. Mas havia aí lume, vozes abafadas, e de vez em quando um
gorgolejo ou chape-chape de água.
Depois das
vielas por onde se encafuara, já tudo isto daria a Lélito uma quase favorável
impressão de largueza, companhia, (pois não havia gente nesses barcos? não era
o que ainda o reanimava, sentir a proximidade humana de vez em quando?) se a
dupla inquietação de se achar afastado do centro da cidade, e sem ver onde
poderia esperar a manhã, o não enchesse de cruéis incertezas. Como se
encaminhara, sequer, tão naturalmente, para estes lugares pouco
tranquilizadores?
Não poderia
ter ido parar às vias mais concorridas? Decerto haveria aí algum café aberto,
qualquer lugar onde ficasse. Dir-se-ia que um obscuro desígnio do destino (ou
uma impulsão secreta) não só aqui o atraíra, a tais paragens, mas até nelas o
retinha; e que, não obstante os seus terrores, uma curiosidade ansiosa, doentia,
e um desespero e um desleixo de todo o ser – o guiavam nesta inútil e
inesperada peregrinação. Lélito suspeitou que se lhe revelava o gosto das
aventuras perigosas, e que era uma expectativa delas que o dirigia...
Ao cabo de
uns momentos verificara não ser o único vadiando à margem do rio. Um ou outro
pequeno grupo se demorava, ainda, nas sombras daquelas portas escondidas sob
antigos arcos; umas abaixo do empedrado negro, ao fundo de quaisquer degraus,
outras rasgadas numa espécie de muralha sobre que se erguiam prédios estreitos
como torres, com varandas de velhas madeiras, ou casarões imundos e sólidos.
Não obstante a amplidão do horizonte em frente, um cheiro igualmente
nauseabundo envolvia todas essas portas, penetrara para sempre essas pedras;
mas aqui cheirava ainda a frutas podres (que iam ficando do mercado diário), pó
de carvão, águas chocas e comidas azedas. Eram, decerto, moradores ou
frequentadores retardatários destes antros, os raros vultos que ainda por ali.
Demoravam.
Ora
enquanto, perante estas misérias que pela primeira vez se lhe revelavam tão
completamente, sentia um acre gosto de humilhação atraí-lo aos seus semelhantes
mais infelizes, (aliás nem a sua infelicidade se lhe revelara ainda, ele é que
a estava imaginando) muito bem sentia Lélito que uma particularidade qualquer
nos seus modos, no seu andar, no seu ar – qualquer coisa que, tanto por temor
como por solidariedade com a miséria, procurava agora esconder –
irremediavelmente o apontaria à desconfiança, à hostilidade, ao sarcasmo desses
miseráveis.
Com efeito,
um vulto que de repente apareceu a seu lado deu-lhe um encontrão. Era um homem
gordo, com olhos agudos que procuraram os seus de perto, como a perguntarem-lhe
o efeito de tal familiaridade. Parecia ter surgido de qualquer alçapão.
– Desculpe!
– disse com uma espécie de insolência na voz rouca.
– Não faz
mal... – balbuciou Lélito involuntariamente.
E logo o
outro, estendendo a mão para o seu braço:
– Escute
lá...
Mas Lélito
desandara; acabara por desatar a correr como uma criança apavorada e
perseguida. Quando parou, reconheceu que não pensara em escolher caminho. De
novo metera por uma dessas ruas infaustas que bem quisera evitar. Com um
alvoroço, lembrou-se de levar a mão ao bolso em que tinha toda a sua fortuna.
«Meu Deus!»
apelou do fundo de si. Mas a sua fortuna lá estava: duas notas miúdas, alguns
trocos. «Obrigado!» bradou em pensamento. Nestas situações, (posto nunca Lélito
se houvesse achado em nenhuma idêntica) logo entre ele e o seu Deus mais
familiar se estabelecia uma rápida comunicação: pedidos, agradecimentos,
queixas, acusações... Era ridículo, com as suas dúvidas e as suas pretensões
filosóficas! Era ridículo! era ridículo.
Embora
semelhante às outras na desoladora aparência das casas, no empedrado primitivo,
a rua em que se achava tinha a vantagem de ser um pouco mais larga; também a de
ser uma ladeira. Lélito sabia que, subindo, se aproximaria do centro da cidade.
Chegou a um terreiro com aspecto arcaico e a fachada, ao fundo, de uma igreja
em ruínas. À primeira vista, era um pequeno largo sem saída. Julgando que seria
obrigado a retroceder, Lélito sobressaltou-se. Avançou, porém, em direcção à
igreja, cuja fachada se erguia na penumbra como um cenário fantástico; tanto
mais que, propriamente, ela quase não tinha senão fachada. Descobriu ao lado
quaisquer escadinhas estreitas que subiam.
Uma figura
de mulher, embrulhada num xale, se despegou, então, direita a ele, da parede da
igreja. Tinha qualquer coisa de espectral ou fatal, como se ali o estivera
esperando há anos! há séculos; ou, então, como se pertencera àquelas mesmas
pedras, ou delas nascera. Galgando as escadinhas íngremes, Lélito ainda pôde
perceber que o fantasma o chamava...
Era tempo!
era tempo de chegar a qualquer ponto mais ou menos conhecido.
Os seus
nervos começavam a desafinar; a sua imaginação a trabalhar em excesso; de modo
que já nele se manifestava com uma intensidade premente, ameaçadora, aquele
senso do estranho que torna medonhas e secretas as próprias coisas mais
triviais. Qualquer ser, ou até um simples objecto, uma árvore, um pormenor de
paisagem, – poderiam nesses momentos apavorar Lèlito, revelando o seu segredo.
Isto é:
revelando-se, fulgurantemente, misteriosos. Então, as pessoas tomavam a seus
olhos um doairo de aparições (seria real, por exemplo, a mulher que se
despegara da igreja arruinada?) e, o que não era menos perturbante, as próprias
coisas manifestavam fragmentos de seres vivos e desconhecidos, como se nelas
ofegassem pequenos monstros forcejando por se libertarem...
Bem era
tempo de chegar a qualquer ponto mais ou menos conhecido!
Felizmente,
Lèlito acabava de reconhecer a velha Sé naquela grande massa pesada, escura,
diante de que viera ter. Para lá do muro, lá em baixo, muito vagamente nascia
do nevoeiro e da noite um baralhado casario da cidade salpicado de halos
luminosos. Lèlito não ignorava que, descendo pelo lado oposto ao que o
trouxera, se aproximaria das ruas mais concorridas, mais modernas... Assim se
valia agora de algumas deambulações empreendidas quando faltava às aulas,
enganando a vigilância do senhor Bento Adalberto. Mas, ao cabo de ter hesitado
uns passos, aflitivamente se agarrou à primeira haste de candeeiro. É que
tivera a impressão de que o chão desatara a correr, e se despenhava sob os seus
pés.
Sentiu,
então, uma infinita moleza nas pernas, e um arripio que lhe corria o corpo, e
recomeçava, se multiplicava em pequenas arripios consequentes como breves,
repetidas ondulações...
Fora sua
intenção chegar à larga praça onde estava o homem de bronze, a cavalo, (não lhe
lembrava agora o nome, – um nome tão conhecido!) e que lhe era o centro mais
familiar do Porto. Aí descansaria um pouco, e poderia tomar uma decisão. Talvez
ainda encontrasse qualquer café aberto, ou lhe valesse a pena procurar uma
pensão, um hotel... Até já pensara em alugar um automóvel (mas encontrar
automóveis, a esta hora?!) que o levasse a Azurara. Afinal, em breve poderia
estar diante de casa. Bateria, acordaria os que há muito dormiam no profundo
aconchego dos velhos quartos familiares; e deixar-se-ia cair de joelhos no
pátio de entrada, (oh, o que ele tinha era vontade de se deixar cair!) quando o
pai, alarmado, viesse descendo as escadas de pedra... O pai não havia de o pôr
fora; – e sem dúvida pagaria ao motorista. De momento, é que nem forças tinha
para chegar à praça da estátua equestre, que aliás nem sabia se era longe.
E ali estava
amparado àquele candeeiro, como um bêbedo, e outra vez gritando aflitivamente
do fundo de si: «Meu Deus! meu Deus!» Em razão, talvez, não tanto do seu estado
como da inquietação que lhe ele inspirava, tinha um vazio pesado na cabeça, uma
dor ao fundo da órbita direita, enquanto o angustiava a sensação agónica de ir
vomitar a cada instante. Sobretudo o aterrava a perspectiva de ali cair, nessa
rua deserta, onde só o pudesse encontrar um polícia, um vadio nocturno, ou um
desses desgraçados que andam varrendo ruas a desoras...
Fechara os
olhos por segundos, a testa contra o candeeiro. Foi quando ouviu a seu lado:
– Boa noite,
amorzinho.
Vagamente
reconheceu aqueles olhos vidrados, grandes, como de quem tem febre, naquela
face muito chupada e vermelha de tintas. Era a mulher do vestido claro, que já
o saudara com a mesma fórmula.
Relanceou,
então, à roda, pela rua deserta, pelos velhos prédios, os olhos enevoados.
Compreendeu que já passara naquela rua; diria ele que há muitas horas! Mas essa
mulher de vestido claro, leve, numa noite assim fria, lá continuava no seu
passeio profissional: Ainda não seduzira ninguém; ou já seduzira, e recomeçara
a tentar a sorte. A complexa impressão que da primeira vez lhe produzira –
receio do desconhecido, pudor da virgindade tentada, repulsa física por tal
género de mulheres, curiosidade e atracção precursoras do desejo – a complexa
impressão que da primeira vez lhe produzira, e de que nem ele chegara bem a dar
conta, é que já lha não podia produzir: Agora, Lèlito estava simplesmente
esgotado; exausto! Precisava de uma cama e do socorro, ao menos da companhia,
de qualquer ser humano; até daquele.
– Bebeste...
– disse a mulher, inclinando-se um pouco a examiná-lo. Como ele nada dizia,
limitando-se a olhá-la com os mesmos olhos enevoados e tristes, acrescentou:
– Sei de um
quarto aqui perto, muito em conta...
– ...Perto?
muito em conta...? – repetiu Lèlito inconscientemente, como num eco.
– São dois
passos – respondeu ela, animando-se imediatamente. E logo lhe pousou a mão no
braço, apertando-lho de leve, num movimento quase natural de carinho. A
esperança de ganhar a noite vibrara na sua voz um pouco rouca.
Decerto
ainda não seduzira ninguém.
Com um
esforço para se desencostar do candeeiro, Lèlito murmurou, à laia de desculpa:
– Senti-me
mal... estou doente...
– Ora! – fez
ela - sei o que isso é: bebeste.
Depois de
hesitar um segundo, perguntou:
– Tens
dinheiro?
– Algum... –
balbuciou ele baixando ainda a voz, de modo que mal se ouvia; e dir-se-ia que,
na verdade, receava ser ouvido. – Mas tenho de seguir para Azurara.
Preciso de
guardar para o comboio... o comboio parte cedo... de madrugada...
– Bem! o
comboio pouco é. E há necessidade de ires assim tão cedo? Simpatizo contigo,
palavrinha. Gosto de um rapazinho novo como tu. Quem te mandou beber de mais?
Não deves estar muito habituado... Que idade tens? Mas vais ver que sei tratar
de ti! Sou boa rapariga, acredita; não julgues lá que por andar nisto...
Isto é um
modo de a gente viver!
Agarrara-se-lhe
ao braço, era ela quem o ia levando. Lèlito deixava-se levar. E era-lhe
agradável não só descansar o corpo sobre o dela, mas também sentir-lhe na voz um pouco rouca e áspera, de tísica,
inflexões quase maternais."
José Régio, in "Uma Gota de Sangue - A velha casa 1",Ed.Portugália, Lisboa, 1961
A velha casa da Boavista... Lélito e toda a verosimilhança com Régio... Quando o escritor se demorava a terminar "A Velha Casa", que nunca terminou, logo os amigos surgiam a perguntar:
ResponderEliminar- "A Velha Casa"... Então, Zé, a velha casa ou não casa?!...