terça-feira, 21 de março de 2017

Celebrar a poesia na espessura do poema

Voz Activa

Canta, poeta, canta!
Violenta o silêncio conformado.
Cega com outra luz  a luz do dia.
Desassossega o mundo sossegado.
Ensina a cada alma a sua rebeldia.
                     Coimbra, 8 de Julho de 1977
Miguel Torga, in Diário XIII, Círculo de Leitores, Portugal
Alma Gentil e Minha

Alma gentil e minha, assim partiste,
era cedo no dia e já poente.
Ficas onde ficaste levemente,
e a mim fica a saudade que persiste.

Se lá onde, descendo, tu subiste,
suspeita da memória se consente,
recorda o fogo, sem se ver, ardente,
que em olhos meus, impuros, puro viste.

O céu, a terra, o vento sossegado
sabem dizer-me onde esmorece a vida:
que nocturno silêncio prolongado!

Roga ao deus que tão cedo te quis ida
que não faça na vida demorado
o não ter-te depois de ontem tida.
Eugénio Lisboa, in Matéria Intensa, Editora Peregrinação, Baden/ Suíça
Estar lá
na espessura do mundo
as mãos abertas
o coração em vigília

Estar lá
sem outro desejo
que uma nascente
sem outro desígnio
que o amor.
Jean-luc Pouliquen, in ApeadeiroRevista de Atitudes Literárias nº 2, Edições Quasi, 2002
A Felicidade da Luz

A felicidade da luz é a felicidade 
do sangue que percorre
o nosso corpo, e dá tudo o que tem.
A luz é feliz
porque acompanhou
a infância do mundo.
É como aqueles poetas
que tentam fazer
dos seus versos
água bastante, perdurável.
Apenas o nevoeiro toca
nessa claridade, mas a luz continua no alto
prestável, soberana.
( Que pena, meu amor,
que nela não estejas.)
António Osório, in A Felicidade da Luz, Assírio & Alvim Editores, Novembro de 2016
A Secreta Viagem

No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada...
Como podem só dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!

Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de madeira, à proa...
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...

Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
Aonde iremos ter? — Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!

Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
— Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!
David Mourão-Ferreira, in
https://resources.blogblog.com/img/icon18_edit_allbkg.gifCírculo Primeiro, Lira de Bolso, Publicações Dom Quixote
                                                   [ o amor  confuso ]
Certo de que voltas, canção,
a incerta hora, 
espero como quem mora
só, a visitação. 

Sei, por sinais e anjos desviados, 
que rebentas dos sonhos desolados
em flores no chão.

Apenas flores, sem nimbos na lapela.
Flores para a mesa, 
com o odor da certeza
de água, vinho e pão.

Apenas flores e tu,
ó meu amor sem nome,
e a nossa dupla fome 
dum menino nu.
Sebastião Alba, in O Ritmo do Presságio - Uma Pedra ao Lado da Evidência , Campo de Letras, S.A., 2000, Porto
Barco de papel

Quem sabe por tantos barcos
navegarem a minha infância
herdei essa enorme ânsia
por  navios, terras e mares.

Nesse mar dos meus pesares
meu porto é uma ilha perdida
e assim naveguei na vida
passageiro do horizonte.

Hoje pergunto a mim mesmo
se não remei sempre a esmo
a bordo do meu batel...

com meu sonho de criança
navegando a esperança
num barquinho de papel.
                 Curitiba, 16 de Dezembro de 2004
Manoel de Andrade, in Cantares, Escrituras Editora, Brasil, 2007
Ode para o Futuro

Falareis de nós como de um sonho.
Crepúsculo dourado. Frases calmas.
Gestos vagarosos. Música suave.
Pensamento arguto. Subtis sorrisos.
Paisagens deslizando na distância.
Éramos livres. Falávamos, sabíamos,
e amávamos serena e docemente.

Uma angústia delida, melancólica,
sobre ela sonhareis.

E as tempestades, as desordens, gritos,
violência, escárnio, confusão odienta,
primaveras morrendo ignoradas
nas encostas vizinhas, as prisões,
as mortes, o amor vendido,
as lágrimas e as lutas,
o desespero da vida que nos roubam
- apenas uma angústia melancólica,
sobre a qual sonhareis a idade de oiro.

E, em segredo, saudosos, enlevados,
falareis de nós - de nós! - como de um sonho.
Jorge de Sena, in Pedra Filosofal,1950-Poemas Escolhidos, Círculo de Leitores

Desperta-me no sono em ti

Desperta-me no sono em ti
Desperta os meus mundos por ti
Acende as minhas estrelas mortas, atrai-as para junto de ti.

Sonha-me para lá do meu universo
Conduz-me à morada das chamas
Faz com que eu nasça, para mim, morre-me para eu estar junto de ti.

Mais perto, mais perto de ti
Mais perto do meu lar de nascimento
Aquece-me, aperta-me para estar junto de ti.
Gunnar Eklöf,   em Dependência - Lágrimas e suspiros  de Ingmar Bergman, Assírio & Alvim, 2002
Lembra-te

Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos 
Mário Cesariny, in "Pena Capital", 1957, Lisboa, Assírio &Alvim
Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
Mário Cesariny, in "Pena Capital",1957, Assírio& Alvim, Lisboa

Sem comentários:

Enviar um comentário