Voz Activa
Canta, poeta, canta!
Violenta o silêncio conformado.
Cega com outra luz a luz do dia.
Desassossega o mundo sossegado.
Ensina a cada alma a sua rebeldia.
Coimbra, 8 de Julho de 1977
Coimbra, 8 de Julho de 1977
Miguel Torga, in Diário XIII, Círculo de Leitores, Portugal
Alma gentil e minha, assim partiste,
era cedo no dia e já poente.
Ficas onde ficaste levemente,
e a mim fica a saudade que persiste.
Se lá onde, descendo, tu subiste,
suspeita da memória se consente,
recorda o fogo, sem se ver, ardente,
que em olhos meus, impuros, puro viste.
O céu, a terra, o vento sossegado
sabem dizer-me onde esmorece a vida:
que nocturno silêncio prolongado!
Roga ao deus que tão cedo te quis ida
que não faça na vida demorado
o não ter-te depois de ontem tida.
Eugénio Lisboa, in Matéria Intensa, Editora Peregrinação, Baden/ Suíça
na espessura do mundo
as mãos abertas
o coração em vigília
Estar lá
sem outro desejo
que uma nascente
sem outro desígnio
que o amor.
Jean-luc Pouliquen, in Apeadeiro, Revista de Atitudes Literárias nº 2, Edições Quasi, 2002
as mãos abertas
o coração em vigília
Estar lá
sem outro desejo
que uma nascente
sem outro desígnio
que o amor.
Jean-luc Pouliquen, in Apeadeiro, Revista de Atitudes Literárias nº 2, Edições Quasi, 2002
A felicidade da luz é a felicidade
do sangue que percorre
o nosso corpo, e dá tudo o que tem.
A luz é feliz
porque acompanhou
a infância do mundo.
É como aqueles poetas
que tentam fazer
dos seus versos
água bastante, perdurável.
Apenas o nevoeiro toca
nessa claridade, mas a luz continua no alto
prestável, soberana.
( Que pena, meu amor,
que nela não estejas.)
António Osório, in A Felicidade da Luz, Assírio & Alvim Editores, Novembro de 2016
No barco sem
ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada...
Como podem só dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!
Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de madeira, à proa...
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...
Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
Aonde iremos ter? — Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!
Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
— Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!
David Mourão-Ferreira, in Círculo Primeiro, Lira de Bolso, Publicações Dom Quixote
ficámos nós os dois, parados, de mão dada...
Como podem só dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!
Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de madeira, à proa...
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...
Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
Aonde iremos ter? — Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!
Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
— Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!
David Mourão-Ferreira, in Círculo Primeiro, Lira de Bolso, Publicações Dom Quixote
Certo de que voltas, canção,
a incerta hora,
espero como quem mora
só, a visitação.
Sei, por sinais e anjos desviados,
que rebentas dos sonhos desolados
em flores no chão.
Apenas flores, sem nimbos na lapela.
Flores para a mesa,
com o odor da certeza
de água, vinho e pão.
Apenas flores e tu,
ó meu amor sem nome,
e a nossa dupla fome
dum menino nu.
Sebastião Alba, in O Ritmo do Presságio - Uma Pedra ao Lado da Evidência , Campo de Letras, S.A., 2000, Porto
Barco de papel
Quem sabe por tantos barcos
navegarem a minha infância
herdei essa enorme ânsia
por navios, terras e mares.
Nesse mar dos meus pesares
meu porto é uma ilha perdida
e assim naveguei na vida
passageiro do horizonte.
Hoje pergunto a mim mesmo
se não remei sempre a esmo
a bordo do meu batel...
com meu sonho de criança
navegando a esperança
num barquinho de papel.
Curitiba, 16 de Dezembro de 2004
Manoel de Andrade, in Cantares, Escrituras Editora, Brasil, 2007
Desperta-me no sono em ti
Desperta os meus mundos por ti
Acende as minhas estrelas mortas, atrai-as para junto de ti.
Sonha-me para lá do meu universo
Conduz-me à morada das chamas
Faz com que eu nasça, para mim, morre-me para eu estar junto de ti.
Mais perto, mais perto de ti
Mais perto do meu lar de nascimento
Aquece-me, aperta-me para estar junto de ti.
Gunnar Eklöf, em Dependência - Lágrimas e suspiros de Ingmar Bergman, Assírio & Alvim, 2002
em flores no chão.
Apenas flores, sem nimbos na lapela.
Flores para a mesa,
com o odor da certeza
de água, vinho e pão.
Apenas flores e tu,
ó meu amor sem nome,
e a nossa dupla fome
dum menino nu.
Sebastião Alba, in O Ritmo do Presságio - Uma Pedra ao Lado da Evidência , Campo de Letras, S.A., 2000, Porto
Barco de papel
Quem sabe por tantos barcos
navegarem a minha infância
herdei essa enorme ânsia
por navios, terras e mares.
Nesse mar dos meus pesares
meu porto é uma ilha perdida
e assim naveguei na vida
passageiro do horizonte.
Hoje pergunto a mim mesmo
se não remei sempre a esmo
a bordo do meu batel...
com meu sonho de criança
navegando a esperança
num barquinho de papel.
Curitiba, 16 de Dezembro de 2004
Manoel de Andrade, in Cantares, Escrituras Editora, Brasil, 2007
Ode para o Futuro
Falareis de
nós como de um sonho.
Crepúsculo dourado. Frases calmas.
Gestos vagarosos. Música suave.
Pensamento arguto. Subtis sorrisos.
Paisagens deslizando na distância.
Éramos livres. Falávamos, sabíamos,
e amávamos serena e docemente.
Uma angústia delida, melancólica,
sobre ela sonhareis.
E as tempestades, as desordens, gritos,
violência, escárnio, confusão odienta,
primaveras morrendo ignoradas
nas encostas vizinhas, as prisões,
as mortes, o amor vendido,
as lágrimas e as lutas,
o desespero da vida que nos roubam
- apenas uma angústia melancólica,
sobre a qual sonhareis a idade de oiro.
E, em segredo, saudosos, enlevados,
falareis de nós - de nós! - como de um sonho.
Jorge de Sena, in Pedra Filosofal,1950-Poemas Escolhidos, Círculo de Leitores
Desperta-me no sono em ti
Crepúsculo dourado. Frases calmas.
Gestos vagarosos. Música suave.
Pensamento arguto. Subtis sorrisos.
Paisagens deslizando na distância.
Éramos livres. Falávamos, sabíamos,
e amávamos serena e docemente.
Uma angústia delida, melancólica,
sobre ela sonhareis.
E as tempestades, as desordens, gritos,
violência, escárnio, confusão odienta,
primaveras morrendo ignoradas
nas encostas vizinhas, as prisões,
as mortes, o amor vendido,
as lágrimas e as lutas,
o desespero da vida que nos roubam
- apenas uma angústia melancólica,
sobre a qual sonhareis a idade de oiro.
E, em segredo, saudosos, enlevados,
falareis de nós - de nós! - como de um sonho.
Jorge de Sena, in Pedra Filosofal,1950-Poemas Escolhidos, Círculo de Leitores
Desperta-me no sono em ti
Desperta-me no sono em ti
Desperta os meus mundos por ti
Acende as minhas estrelas mortas, atrai-as para junto de ti.
Sonha-me para lá do meu universo
Conduz-me à morada das chamas
Faz com que eu nasça, para mim, morre-me para eu estar junto de ti.
Mais perto, mais perto de ti
Mais perto do meu lar de nascimento
Aquece-me, aperta-me para estar junto de ti.
Gunnar Eklöf, em Dependência - Lágrimas e suspiros de Ingmar Bergman, Assírio & Alvim, 2002
Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos
Mário Cesariny, in "Pena Capital", 1957, Lisboa,
Assírio &Alvim
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
Mário
Cesariny, in "Pena
Capital",1957, Assírio& Alvim, Lisboa
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