Hôtel de Lauzun |
"Era no Hôtel de
Lauzun que Le Club des Hachichins realizava as suas reuniões. Aí, um grupo de homens ligados às letras e
às artes — incluindo os escritores Balzac, Gautier e Baudelaire e os pintores
Édouard Manet, Honoré Daumier e Constantin Guys — reunia-se com umas quantas
mulheres para passar longas noites em que ouviam música e... comiam haxixe
(porque, pelos vistos, o haxixe era servido sob a forma de uma geleia
esverdeada), O anfitrião, Fernand Boissard, um pintor menor, era rico (sem
depender de heranças) e vivia no principal e principesco andar do Hôtel, onde
tinha um clavicórdio, ao que parece decorado com pinturas de Watteau, e
elegantes peças de mobiliário que casavam na perfeição com as paredes e as
portas pintadas, esculpidas e douradas. Boissard costumava tocar violino quando
estava pedrado; ou então contratava músicos para o acompanharem num trio de
Beethoven ou Mozart.
Uma das visitas da casa, Paul Guilly, lembra que Boissard
...era um homem que
vivia para o refinamento e a volúpia e que tinha verdadeiro horror aos
convidados importunos ou maçadores. O seu maior prazer era receber e, por isso
mesmo, seleccionava as visitas com todo o cuidado; não se podia aparecer sem
convite, mas, a partir do momento em que éramos admitidos no círculo íntimo,
podíamos fazer ou dizer aquilo que nos apetecesse. Rodeava-se de artistas que
partilhavam os seus gostos e de belas raparigas que não eram obtusas, nem, em
abono da verdade, completamente ignorantes das questões espirituais ou
artísticas. Acima de tudo, Boissard adorava os jantares com amigos sinceros,
incondicionais, essas noites íntimas em que passávamos horas debatendo os
significados de um paradoxo entre um pouco de música de cravo e as estrofes de
um poema.
Théophile Gautier deixou-nos um relato extremamente colorido da sua
primeira participação numa das reuniões mensais do Club des Hachichins.
Nesse texto, Gautier recorda que estava uma noite de breu e um nevoeiro muito
cerrado — uma verdadeira tela de algodão que esbatia todos os objectos e que só
a luz das lanternas ou das janelas conseguia penetrar. Além disso, caía uma
chuva fria, de tal forma que o cocheiro de Gautier mal conseguia enxergar a
placa de mármore que indicava o nome do Hôtel. Uma velha criada
abriu-lhe a pesada porta e, com um dedo magro, indicou-lhe o caminho.
De súbito, o escritor viu-se diante de uma daquelas escadarias
gigantescas construídas na época de Luís XIV (tão gigantesca, de facto, que uma
casa moderna caberia toda lá dentro com a maior facilidade, diz Gautier). A
estátua de uma quimera egípcia erguia uma única vela. Pensando nos cortesãos do
século XVII com as suas rendas e perucas, Gautier concluiu que estava
pessimamente vestido para a ocasião. No andar de cima, Gautier tocou a uma
sineta e logo penetrou numa ampla sala, iluminada apenas numa das extremidades;
nesse instante, teve a clara sensação de que acabara de recuar dois séculos.
Um médico encarregava-se do haxixe. Aparecia com uma bandeja carregada
de geleia verde e os convidados, depois de terem comido a dose a que tinham direito,
passavam uns aos outros as chávenas de café turco. Tendo começado com a última
coisa que se serviria num jantar francês normal, sentavam-se depois a uma mesa
a fim de degustarem uma refeição mais convencional. Os pratos e os copos,
contudo, eram estranhos, exóticos — pratos de serviços diferentes (da China, do
Japão, da Saxónia), copos de cristal de Veneza. Sob a influência da droga, a
água sabia a vinho e a carne a framboesas. Com a refeição já perto do fim,
Gautier sentiu que estava a enlouquecer. As alucinações que, durante o jantar,
se tinham apossado dele em vagas intermitentes, converter-se-iam, durante o
resto da noite, numa parte permanente, embora sujeita a flutuações constantes,
da sua percepção.
Todos os sinais de quem está totalmente, delirantemente, ou mesmo
perigosamente pedrado, e que o meu caro leitor tão bem conhece, eram já algo de
familiar para os frequentadores e residentes do Hôtel de Lauzun mais
dados às artes e às letras. Rompiam num riso incontrolável e, escassos segundos
depois, um medo inexprimível apossava-se deles, logo seguido de um plangente
amor a toda a humanidade ou da total imersão num livro de gravuras. Os
movimentos tornavam-se lentos e viscosos, o tamanho dos quartos expandia-se de
uma forma brutal, um sentido do épico e do magnificente distorcia a atmosfera
da reunião, para logo ser substituído por um olhar que descobria com repulsa os
grotescos rostos dos outros hachichins. Tudo era tão distorcido — e tão
apelativo para a imaginação — que não admira que Gautier tivesse usado a
palavra «fantasia» para descrever uma tal noite. Saberia Gautier (por certo
sabia) que uma fantasia era também uma composição musical de forma livre aberta
ao improviso? Ou que, em Marrocos, uma fantasia era uma gala equestre e militar
que envolvia espectaculares investidas de sucessivos esquadrões de cavalaria
dotados de inexcedíveis talentos na arte da equitação, os homens vestidos com
figurinos de veludo debruados a ouro e mantos esvoaçantes, montando magníficos
garanhões, acompanhados por uma banda e por tambores e até por danças, e com
toda a cena envolta no nevoeiro causado pelo fumo das fogueiras onde se
preparava o banquete que se seguiria ao espectáculo?
Como seria de esperar, Balzac inspeccionou com toda a atenção a geleia
verde e chegou mesmo a pegar nos diversos apetrechos, provenientes do Próximo
Oriente, que se destinavam ao consumo da droga, e, como era seu timbre, fez
todas as perguntas do género «recolha de informações» — mas não provou nem um
miligrama do haxixe, receando perder o controlo da sua vontade de aço ou da sua
influenciável mente. Provavelmente, o Clube dos Consumidores de Haxixe não se
reuniu mais de oito ou nove vezes. Também não há nenhuma prova de que o próprio
Baudelaire tenha experimentado a droga mais do que uma ou duas vezes; de
qualquer modo, o poeta considerava o vinho preferível ao haxixe, já que o
vinho, dizia ele, era mais «democrático» porque mais barato e mais facilmente
disponível (tal e qual como Oscar Wilde, Baudelaire era simultaneamente um
«socialista» e um snob estético). Para ser mais exacto, Baudelaire louvava
tanto o vinho como o haxixe por promoverem «o excessivo desenvolvimento poético
da humanidade», mas não deixava de acentuar que o vinho exalta a vontade, o
haxixe aniquila-a. O vinho é um sustento para o corpo, o haxixe uma arma pata o
suicídio. O vinho torna as pessoas boas e amistosas. O haxixe isola, O vinho
significa trabalho duro, ao passo que o haxixe é um sinónimo de preguiça. Por
que estranha razão há-de alguém suportar a maçada que é trabalhar, lavrar a
terra, escrever, enfim, fazer o que quer que seja, se, com uma fumaça, pode
alcançar o paraíso? O vinho é para as pessoas que trabalham e que merecem
bebê-lo. O haxixe pertence à categoria dos prazeres solitários; foi feito para
o ocioso infeliz. O vinho é útil, produz resultados frutíferos. O haxixe é
inútil e perigoso.
É possível que a imaginação de Baudelaire fosse tão espicaçada pela
atmosfera do Hôtel de Lauzun como pelo próprio haxixe. Ele e Gautier celebravam
a história segundo a qual a palavra haxixe estaria ligada à palavra assassino;
no seu conto Le Club des Hachichins, Gautier conta mesmo a história do
déspota «oriental» que transformou os seus homens em saqueadores (ou
assassinos) desvairadamente intrépidos e sem o menor medo da morte, mantendo-os
constantemente pedrados com haxixe.
Ou talvez
Baudelaire tivesse sido estimulado pelos seus companheiros e muito em
particular por uma surpreendente jovem conhecida como Pomaré (de seu verdadeiro
nome Elise Sergent) que praticava o travestismo. «La Pomaré», como lhe chamava
Baudelaire, vestia-se como um «gentleman» (o poeta usava a palavra inglesa),
com gravata branca, fraque preto, calças pretas e sobretudo branco. As mãos
enluvadas de branco costumavam empunhar uma bengala. A Pomaré era, segundo o
poeta, um bom camarada e óptima companhia — excepto quando dava com uma
bourgeoise num restaurante. Se, por exemplo, visse a mulher de um notário
sentada a uma mesa com o marido, tinha um acesso de fúria e rompia a cantar a
sua canção favorita — que falava de um general do exército italiano que estava
de cócoras a coçar os tomates, o que levava uma elegante virgem a dizer-lhe que
ele não passava de um cara de cu... A Pornaré era alta e esbelta, com um peito
raso, um dito espirituoso sempre na ponta da língua e, quando lhe dava para
isso, era tão frontal, tão terra-a-terra, que Baudelaire lhe chamava «o meu
camarada das ancas largas». A Pomaré vivia no Hôtel de Lauzun e Baudelaire
desejava-a (ou, pelo menos, excitava-o a ideia de uma mulher tão sem pruridos
nem inibições) tanto quanto a estimava.”
Edmund White, in “Paris, os passeios de um flâneur” Asa editores,2004
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