sexta-feira, 31 de março de 2017

Portugal


Viagem

É o vento que me leva.
O vento lusitano.
É este sopro humano
Universal
Que enfuna a inquietação de Portugal.
É esta fúria de loucura mansa
Que tudo alcança
Sem alcançar.
Que vai de céu em céu,
De mar em mar,
Até nunca chegar.
E esta tentação de me encontrar
Mais rico de amargura
Nas pausas da ventura
De me procurar... 

Miguel Torgain 'Diário XII', Círculo de Leitores

quinta-feira, 30 de março de 2017

Ay de mi Primavera

Buika, em Ay de mi Primavera.


Ay de mi Primavera

Sal de aquí por favor
No me mires así
Ahora quiero estar sola
Esta es mi voluntad ya
Tú ya no me harás dudar
Más de mi persona

Ya no quiero saber
Si me vas a condenar
Por buscar mi destino
Y si el día en el que marche
Me vas a enredar como siempre
Pa que no haga camino

Ay de mi primavera
Quién me devolviera
Lo que yo era
Lento
Para encontrar un nuevo camino
Lento, lento, lento
Como yo

Mi futuro es mentira
El pasado me pesa y me sobra
Por el miedo ahora callo
Yo sé que me arde la boca

Yo no debo callar
Porque voy buscando
Un camino lento
Yo voy bucando un camino lento
Yo voy buscando
Buscándote, buscándome
Y buscándote en él

Ay de mi primavera
Quién me devolviera
Lo que yo era
Lento
Cuando respiraba lento
Cuando me movía lento
Lento como yo
Cuando tú me amabas lento
Cuando me besabas lento
Cuando me creías lento

Lento como yo.

O espírito do lugar

"O espírito do lugar é-me dificílimo aprendê-lo porque justamente aprendi esse no espírito em que se me fez. Tudo mais só me deu o espírito do lugar na medida em que me foi o lugar do meu espírito..."
Vergílio Ferreira, in Um Escritor Apresenta-se , INCM, 1981

quarta-feira, 29 de março de 2017

O mundo de ontem

" Via-me sempre obrigado a pensar nas palavras que um exilado russo me tinha dito havia anos: " Antigamente o ser humano só tinha um corpo e uma alma. Hoje também precisa de um passaporte, caso contrário não é tratado como pessoa."
E de facto: talvez nada dê uma ideia tão clara do gigantesco retrocesso sofrido no mundo desde a Primeira Guerra Mundial como as restrições à liberdade de circulação das pessoas e a redução dos seus direitos de cidadãos livres. Antes de 1914, a Terra  era de todos. Cada um ia para onde queria  e ficava o tempo que quisesse. Não havia autorizações , permissões , e divirto-me sempre ao ver o espanto dos mais jovens quando lhes conto que, antes de 1914, andei pela Índia e pela América sem passaporte e sem nunca ter visto sequer um passaporte.  Uma pessoa  entrava num meio de transporte  e apeava-se  sem perguntar nada e sem que nada lhe fosse perguntado; das centenas de papéis que hoje são exigidos, não era preciso preencher  um único.  Não havia  nem permis, nem vistos,  nem maçadas; as mesmas fronteiras que, devido à desconfiança patológica de todos contra todos, estão hoje transformadas numa barreira de arame  farpado, com funcionários alfandegários, polícia, postos de guarda, não eram mais do que linhas simbólicas que se travessavam com a mesma  descontracção com que se passa o meridiano de Greenwich. Só depois da guerra é que o mundo se viu abalado  pelo nacional-socialismo, e o primeiro fenómeno visível desta epidemia  espiritual do nosso século foi a xenofobia: o ódio ao outro ou, pelo menos,  o medo  do outro. Em todo o lado as pessoas protegiam-se do estrangeiro, em todo o lado ele se via excluído. Todas as humilhações outrora criadas exclusivamente para os criminosos eram agora infligidas ao viajante antes da viagem e durante a viagem. Uma pessoa tinha de se deixar fotografar do lado direito e do lado esquerdo, de perfil e de frente, com cabelo curto que deixasse a orelha à vista; tinha de tirar as impressões digitais, primeiro só do polegar, depois de todos os dez dedos e, além disso,  de apresentar certificados de saúde , de vacina, de boa conduta, boas referências, tinha de poder apresentar convites  e endereços de parentes, tinha de oferecer garantias morais  e financeiras, de preencher  e assinalar impressos em triplicado, em quadruplicado, e se faltasse um único documento nesta pilha de folhas, estava tudo perdido.
Todas estas  coisas podem parecer ninharias. E à primeira vista pode até parecer niquento da minha parte  mencioná-las. Mas foi com estas "ninharias" absurdas que a nossa geração desperdiço absurdamente um tempo precioso e irrecuperável. (...) São só ninharias , sempre só ninharias , eu sei , são só ninharias numa época em que o valor da vida humana caiu ainda mais a pique   do que o valor da moeda. Mas só anotando estes pequenos sintomas é que o tempo vindouro poderá registar o verdadeiro estado clínico das condições espirituais  e das perturbações espirituais que se foi apoderando do nosso mundo no período compreendido entre duas guerras mundiais.
Talvez eu tenha sido mal habituado no passado. Talvez a minha sensibilidade também se tenha vindo a exacerbar cada vez mais, devido às mudanças ocorridas  abruptamente nos últimos anos. Qualquer forma de emigração causa já, por si só, inevitavelmente, uma espécie de desequilíbrio. Perde-se - e também isto  tem de ser vivido, para ser entendido - algo do nosso aprumo, quando não se tem o solo pátrio debaixo dos pés, fica-se mais inseguro, mais desconfiado de si próprio. E não hesito em confessar que,  a partir do dia em que tive de passar a viver com documentos ou passaportes que eram de facto estrangeiros, nunca mais consegui sentir que pertencia a mim próprio. Ficou para sempre destruído algo daquela identidade natural com o meu eu original e verdadeiro. Tornei-me mais reservado do que o que era conforme à minha natureza, e hoje sinto constantemente  - eu, o cosmopolita de outrora - a obrigação de ter de estar agora particularmente  grato por cada lufada de ar que subtraio a um povo estrangeiro, sempre que respiro. Quando penso com a cabeça fria , vejo efectivamente o absurdo destas manias, mas quando é que a razão alguma vez conseguiu triunfar do sentimento! De nada  me serviu ter educado o meu coração,  ao longo de quase meio século, a bater  com o cosmopolitismo próprio de um citoyen du  monde. Não , no dia  em que fiquei sem passaporte, descobri aos cinquenta e oito de idade , que aquilo que se perde com a nossa pátria é mais do que um pedaço de terra limitado por fronteiras."
Stefan Zweig, in " O mundo de Ontem", Assírio & Alvim, Junho de 2015, pp .476,478, 479,480
Sobre o autor: "Stefan Zweig nasceu em Viena, em Novembro de de 1881, viveu em Salzburgo, daí emigrando para Inglaterra, em 1934, e depois para o Brasil, onde acabaria por se suicidar, em Fevereiro de 1942. Filho de um rico industrial judeu, pacifista convicto, amante das letras e do teatro, da Filosofia e da História, Stefan Zweig manteve um intenso contacto com as mais diversas personalidades da vida cultural europeia - Freud, Valéry, Rilke, Verhaeren. Da sua extensa obra - em que cabem também as muitas traduções de Verlaine, de Baudelaire e, sobretudo, de Verhaeren - destacam-se o ensaio, a novela e a biografia." 

terça-feira, 28 de março de 2017

Viajar com Eugénio Lisboa

Eugénio Lisboa, 2017
… viajar é sempre um desafio mental, e até no que tem de mais difícil viajar pode ser uma iluminação.
Paul Theroux, A Arte da Viagem

Os viajantes mais apaixonados também são sempre leitores e escritores apaixonados.
Paul Theroux, A Arte da Viagem

Viajar com Eugénio Lisboa

Assisti , em 21 de  Fevereiro, à apresentação do último livro de Eugénio Lisboa, “Diário de Viagens Fora da Minha Terra”, no Cine-Teatro Garrett, durante o Festival Literário Correntes d’Escritas. Contrariamente ao famoso desafio  lançado pelo patrono  deste Teatro, Almeida Garrett, em “Viagens da minha Terra”,  Eugénio Lisboa convida-nos a viajar fora da sua ( nossa) Terra.
Aceitamos o convite e, sem que tenhamos partido, tomamos conhecimento de que esta obra diarística é  composta por entradas relativas a viagens realizadas durante o período abrangido pelo último e V volume das Memórias do autor. Trata-se, por isso, de um anexo àquela obra .
Curiosos, partimos, então, em viagem com Eugénio Lisboa. O voo primeiro destina-se a Montevideo. O registo do “Diário de Montevideo “ abre-se  a 14.09.1996
Voando para Montevideo.
Ontem todo o mundo avisava que era sexta-feira, dia 13. Cuidado, o melhor é não sair de casa. Apesar dos avisos, saí para o aeroporto. A viagem  era com escala por Madrid. Chegava ali às 21h15 e partia para Montevideo às 23h00. À chegada, a surpresa: havia um atraso grande e a partida de Madrid ficava para as 7h00 da manhã seguinte. Noitada no “Hotel Barajas”. Estava confirmada a previsão de azar. “Que las hay, las hay”, dirão os supersticiosos…
Nesta celebração pessoana, que vai ter lugar em Montevideo ( capital da cultura da América Latina, em 1996) , estava prevista a vinda do Saramago que, afinal não vem. Porque seria? A mim torna-me a viagem simplesmente mais agradável.
Eugénio Lisboa ia a Montevideo para participar num Seminário sobre Fernando Pessoa. Com ele, outros palestrantes que se lhe juntariam  em interessantes conversas e em passeios pela cidade:
15.09.1996
O dia está chuvoso e feioso. Chegado ontem à noite, depois de uma viagem tormentosa e alongada de 10 horas em cima das já muitas previstas, entrei no hotel, arrasado, de barba de mais de 24 horas – e dei com a Cleonice ( Berardinelli) e a Leyla ( Perrone Moisés), no hall, discutindo pormenores. Fui tomar banho, lavar os dentes, fazer a barba e desci para o jantar. Conversa animada e very friendly. Falámos de pessoanos e de feridas e intrigas pessoanas.
(…) Montevideo parece uma cidade bem maior  e mais interessante do que o meu preconceito  e a minha ignorância tinham feito supor.
Já Flaubert dizia –“Viajar torna uma pessoa modesta – vê-se como é pequeno o lugar que ocupamos no mundo. “ Acompanhar Eugénio Lisboa nunca deixa de ser um exercício de aprendizagem e de intensa descoberta.
Montevideo
19. 09.1996
O seminário chega hoje ao fim. (…) Hoje, falo eu, no fim. Estarão todos já cansados e fartos e mortos por se rasparem para casa. E eu a debitar-lhes as náuseas e os exílios de Pessoa.
(…) Ontem, com o Fernando Martinho e a Cleonice, fui, pela segunda vez, ver o Museu Torres Garcia. A secção de retratos é impressionante: o Goya, o Filipe II, o Leonardo, o Cézanne, o Greco e o Ticiano nunca mais me “aparecerão” a não ser nos traços inesquecíveis que lhes deu Torres Garcia. É, sem dúvida, um grande pintor.
Na manhã de ontem, passeio, compra de algum artesanato  e visita à Biblioteca Nacional, com a Cleonice. Investigámos um pouco o ficheiro. Eça de Queirós, bastante bem representado ( 1,5 cm de fichas). Machado de Assis, ainda melhor (2 cm de fichas). De Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, quase nada. De Pessoa, alguma coisa (pouca), mas nada do núcleo duro. Apenas o “Fausto”, “ O Banqueiro Anarquista” e quase mais nada.

Eugénio Lisboa dissertou sobre Fernando Pessoa, numa alocução subordinada ao título “ O exílio e o reino”,no final do Seminário, conforme estava previsto. Abriu e fechou este evento com  a claridade e justa sabedoria que lhe permite o seu extenso conhecimento e farta cultura. Dissertação que foi saudada e assaz ovacionada por todos os presentes.
Entretanto, as viagens prosseguem. Esperam-nos Los Angeles, Peru, Viena, Budapeste, Praga, São Tomé , Havana, Paris e Marrocos.
Se Peru, Viena, Budapeste, Praga e Havana foram viagens de recreio ou de carácter pessoal, as restantes tiveram como finalidade a intervenção em eventos culturais ou  literários. No entanto, há em todas estas viagens um traço comum , um denominador de intensa riqueza: o olhar perspicaz e profundo de um grande intelectual. Ver através desse olhar é ver diferente.
Senão vejamos:
Diário de Viagem ao Peru
22.08.2005
No avião, a caminho de Lima, via Caracas. Chegaremos à Venezuela, dentro de pouco. Agosto – o avião à cunha. O turismo de massa: um dos monstros congeminados  pelo século XX e agravando-se imparavelmente no XXI.
Durmo e leio, leio e durmo.  Faço quadriga  romana entre o TLS e um romance de Ludlum, “ The Prometheus Deception” . Desconforto máximo- desejo que isto acabe de pressa. E pensar que ainda vai haver regresso.
No TLS  debate, pela décima milionésima vez,  sobre se foi Shakespeare quem escreveu as peças e os sonetos. Um dos autores recenseados afirma ter gasto trinta anos de investigação  meticulosa e rigorosa para demonstrar que o autor de “ Macbeth” foi Francis Bacon. Trinta anos para chegar a um erro obviamente clamoroso. A aventura humana é também feita disto.
24.08.2005,
Há dois dias em Lima.
(…) No aeroporto, estava a Geninha ( a filha mais velha de Eugénio Lisboa) à nossa espera, de táxi em riste. Com todo o gás do costume, levou-nos para a nova casa, no mesmo condomínio que já conhecíamos e, em tudo, semelhante à anterior. As “ macnetas” estavam à nossa espera, acordadas e bonitas.(…)
Pachacamaca
1.09.2005
Lima
Hoje, passámos a manhã em Pachacamaca, a ver as ruínas do que foi um pequeno reino dos Incas. A pirâmide , de que pouco resta,  o templo do sol, o templo da lua (com a espécie de convento, onde as crianças eram sacrificadas e algumas “preparadas” para o sacrifício aos deuses).
Os sacrifícios… a quantidade de gente  morta (assassinada), a bem de um gesto feito aos deuses, sem a mais  pequena possibilidade de verificação de que tal gesto fora “ desejado” por um deus  que só supostamente existia e que só supostamente o tornaria eficaz. A monstruosidade de “ todas” as religiões, que têm , ao longo dos séculos , promovido mortes, perseguições, torturas, martírios, sacrifícios, guerras massacres – em nome  de um algo cuja existência não se consegue provar e que tudo indica não passar  da  criação tosca de espíritos amedrontados e um tanto mais fanáticos e cruéis quanto mais inseguros.
Pachacamaca e a memória de crianças assassinadas por decisão de chefes ignorantes e, à sua maneira, bem-intencionados. Não muito diferentes, nisto, da monumental estupidez dos suicidas muçulmanos que se esforçam, hoje com outras armas, por fazer regressar o mundo à idade das trevas.
Viena, Albertinaplatz ( Museu Albertina e Café Mozart)
 No Diário de Viagem a Viena, Budapeste e Praga, Eugénio Lisboa viaja com a mulher numa romaria particular que, apesar do encanto que lhe despertam esses lugares, não deixa de realçar, com insistente agudeza, os efeitos maliciosos da globalização.
11.06.2006
Viena
Chegámos aqui, ontem, às duas da tarde. E, do aeroporto, dirigimo-nos ao centro da cidade. Almoço no “ Café Mozart”, de greeneana memória, e passeio pelo “calçadão”.
Entrada numa livraria e visita rápida à Igreja de S. Stephan. À noite, jantar “típico”, isto é, um “schnitzel” intragável e uma sobremesa medíocre. Salvou-se o vinho – pago à parte.
O que vimos de Viena, charmoso que baste, mas, como tudo, conspurcado pela globalização, que arrasta as mesmas cadeias do mercado para todo o lado. O “Café Mozart” e a “Albertina” não têm de conviver, lado a lado, com o “ H&M" nem com a “Zara”.
Hoje vamos sair e ver, entre outras coisas, o “Prater”, que eu só conheço das novelas de Arthur Schnitzler.(…)
Praga
15.06. 2006
Praga
A grande cidade imperial, a de todas as pompas, mas , também, a de todas as frustrações, infortúnios e depressões. A de Kafka, que andou por aqui sem andar por aqui. Que aqui viveu, sem nunca ter vivido ou tendo vivido de um modo “estranho” a tudo o que se chama viver. (…)
Manhã inteira passeando a pé. Visita à catedral de São Vito, castelo, Praça Velha, o relógio monumental…Acabámos na Praça Venceslau, onde almoçámos, no “Restaurante Pelikan”, voltando para o hotel, estafados. São Vito é um espectáculo impressionante. Pobre Kafka, que acolhimento podia toda esta grandiosidade dar às tuas humilhações, ao teu não-ser, às tuas perplexidades e hesitações, ao teu sentido do absurdo? Capital pomposa de um império pomposo, vaidoso e cruel – como podias tu simpatizar com a vulnerabilidade estupefacta do autor de “ O Processo”? Que haveria de comum, quanto mais de cúmplice, entre a força bruta de toda esta beleza maciça e um frágil judeu, perdido de perplexidade perante uma existência que, para ele, não fazia grande sentido?

As viagens sucedem-se . Evocações, observações e preclaras impressões soltam-se  com elegante insistência , fazendo-nos  sentir que acompanhar  Eugénio Lisboa é um imperdível privilégio.  Em  Paris, leva-nos ao Grand Palais para ver a  exposição dedicada a Courbet   e registar o seguinte:  Poucos quadros vira dele, ao natural,e as suas  assombrosas “paisagens” não reproduzem bem, em livro. Que admirável – e forte, poderoso – paisagista! Os seus rochedos, o sombrio dos seus recantos arborizados não têm melhor em toda a pintura. E o retratista é também de monta. Uma revelação.
Paris
 E despede-se de Paris, embora , sem o prever, ali retorne em  2012.

24.11.2007
Partimos esta tarde. Adeus Paris: foi bom ter-te conhecido, em 1953, ter-te visitado, depois, uma dúzia e meia de vezes e ter estado contigo, agora, mais uma – que será, provavelmente, a última. Que milagre ter nascido e que milagre maior ter nascido entre aquele número muito reduzido de pessoas a quem foi dado conhecer cidades e tesouros como tu, Paris: com a tua cultura, a amplidão dos teus boulevards, a tua saborosa comida, o teu Sena, os teus “bouquinistes” e  até a tão francesa desenvoltura,” mal elevée”, de tantos dos teus habitantes.

Todo este livro é um guia de inexcedível riqueza. As anotações  surgem  ora em perscrutador olhar sobre a realidade que se lhe apresenta, ora em  rica observação, enformada por um conhecimento profundo dos referentes culturais do país. Todas se somam  e se  agregam num singular  e precioso contributo  para  um diferente e   mais completo entendimento de um país a visitar. Eugénio Lisboa desperta-nos o desejo adormecido que há séculos viaja no coração do homem: a descoberta do mundo.
Rabat
Termina este magnífico Diário com a viagem  a Marrocos, ( Junho de 2013), da qual o autor pouco registou, conforme explica nas últimas páginas:(…) Rabat e Marraquexe. Foi uma verdadeira descoberta. Infelizmente , não guardei desta visita, grandes apontamentos de diário: o calor sufocante e desgastante, próprio daquela época e daquele clima norte-africano mas , talvez também, o deslumbramento que tudo me causou – deixaram-me ,  quase sempre, à noite, sem grande  energia para registos diarísticos. O que aí fica – e é pouquíssimo – nem sequer dá conta , o que é cruelmente injusto, do motivo central da minha visita : proferir , em francês, uma conferência sobre Fernando Pessoa, no centro cultural da embaixada. Conferência que proferi perante uma sala cheia  e interessada, ao abrigo de uma organização impecável, a que não faltou uma evocação escultórica, muito imaginativa, do universo doméstico-criativo de Pessoa.

Um desassombrado livro de viagens a ler, um magnifico diário a descobrir, uma obra de  extraordinária relevância para todos aqueles que gostam de saber como se construíram os dias de um culto e arguto viajante, em  diferentes viagens pelo mundo.
 


“Diário de Viagens Fora da Minha Terra”
Autor: Eugénio Lisboa
Editora : Opera Omnia
Publicação: Fevereiro de 2017

segunda-feira, 27 de março de 2017

O Breviário do Brasil da portuguesa Agustina

O nº1212 do JL, Jornal de Letras, da 2ª quinzena deste mês de Março, dedica várias páginas à escritora Agustina Bessa Luís. A  publicação pela  Fundação Calouste Gulbenkian dos seus textos diversos em três grossos volumes que somam quase três mil páginas é , ali, considerado o acontecimento literário do ano. 
Fomos procurar o que se havia escrito sobre esta nossa escritora, fora das nossas fronteiras . Encontrámos a resenha de um dos seus livros, (publicado em Portugal pela Guimarães Editores, em 2012), na revista literária "serrote"  do Brasil, que  transcrevemos.
O Brasil trágico de Agustina Bessa Luís
por GUILHERME FREITAS
A partir de agora, serrote ( revista literária do Brasil) passa a publicar uma secção mensal com resenhas de obras de não ficção estrangeiras e nacionais. O livro deste mês é “Breviário do Brasil”, que reúne textos da portuguesa Agustina Bessa-Luís sobre suas viagens pelo país. 
“Fui criada na memória do Brasil”, disse a portuguesa Agustina Bessa-Luís ao receber o Prémio Camões de 2004, no Rio de Janeiro. Longe de ser só um agrado aos anfitriões, o discurso foi uma celebração da presença do país na vida e na obra da escritora. Filha de um comerciante que voltou a Portugal depois de 25 anos no Brasil, ela cresceu ouvindo histórias do pai sobre a boémia da Rua do Ouvidor e lendo os livros de Joaquim Nabuco, José de Alencar e Machado de Assis que ele levou na mala. Nascida em 1922 na pequena Vila Meã, tinha quase 60 anos quando enfim confrontou essas memórias com a realidade brasileira. Já era a celebrada autora de romances como A sibila (1954) e Fanny Owen (1979) ao desembarcar no país pela primeira vez, em 1982. Nas duas décadas seguintes, voltou oito vezes.
Os textos que escreveu a partir dessas visitas estão reunidos no recém-lançado Breviário do Brasil (Tinta da China). O ensaio homónimo, lançado em Portugal em 1991 e até então inédito por aqui, é fruto de uma longa viagem com uma comitiva de intelectuais portugueses. Entre Março e Abril de 1989, eles cruzaram em ritmo vertiginoso duas dezenas de cidades: do Rio a Recife, de lá para Brasília e São Luís, Belém e Manaus, com várias escalas na Bahia e em Minas Gerais, até a volta ao Rio. Nesse percurso, Agustina recusa o Brasil edulcorado dos guias turísticos. Não liga para paisagens, nem para monumentos. “A parte mais interessante do Brasil não pode ser localizada por uma excursão de burgueses que se movem por admirações históricas e colectivas”, escreve. “O Brasil não se deixa ver, nem ouvir, senão por assombração”.
O que assombra Agustina durante a viagem? Em primeiro lugar, a voz dos escritores que lia com devoção desde a infância. No Recife, evoca João Cabral de Melo Neto ao passar pelas margens do Capibaribe e pensa em Manuel Bandeira como seu “anfitrião”. Em Salvador, o balanço das mulheres a remete a uma personagem de Jorge Amado que “andando, remava um pouco”. Lembra de Machado de Assis (“um de meus melhores amigos na literatura”) até numa caminhada por Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Lá, mesmo a milhares de quilómetros do Rio descrito por Machado, conclui que ele é “um autor profundamente cravado na realidade brasileira”, não só pelos cenários ou tipos que retrata, mas porque “tem a arte de sugerir o amor sem lhe dar importância”.
Agustina segue também o rasto de personagens históricos, dos nobres aos renegados, com curiosidade especial por Lampião. Analisa a complexa relação do Brasil com a herança portuguesa (“O brasileiro é um pouco o português do avesso”, escreve). E se interessa sobretudo pela vida das ruas. Alguns dos pontos mais luminosos do ensaio surgem de seu fascínio pelo quotidiano das cidades. Numa calçada carioca, enxerga a insuspeita “elegância natural do vendedor de rua”, que oferece seus produtos “como quem dá”. Em Ilhéus, observa longamente um violeiro que “canta, lento, como se dormisse encostado ao violão, porta de sua eternidade”. Um casal que dança lambada inspira uma digressão sobre a paixão: “estão sempre enlaçados, sempre carregando-se um ao outro, e tudo o que há de estável no amor têm que o recolher do ar que respiram e forjá-lo numa espécie de fanática resolução. Se pararem, o amor desaparece e morre.”
Em meio a esses assombros, Agustina enxerga um país que em nada lembra o clichê da alegre nação tropical. Aos seus olhos o Brasil é um país de “natureza trágica”, premido pela sensação constante de que “pesa sobre ele qualquer coisa de sinistro”, mas onde, no entanto, prefere-se “enganar a vida com a alegria, em vez de se fantasiar de herói em nome da tristeza”. Não se sabe se ela ouviu Vinicius cantar que o samba é a tristeza que balança, mas há algo do Samba da benção em suas palavras. “Não é a alegria que salva o brasileiro, mas essa força hercúlea que sobe do chão e o agarra, para que não sucumba”, escreve. “Uma força que é uma espécie de grandiosa tristeza hereditária, notável até quando parecem se divertir e quando troçam”.
Hoje com 94 anos, Agustina tem lugar assegurado entre os grandes nomes da literatura de língua portuguesa. Sua vasta obra, com cerca de 50 livros de ficção e ensaio, inclui ainda peças de teatro e uma prolífica colaboração com o cineasta Manoel de Oliveira, que fez mais de uma dezena de filmes a partir de livros e roteiros da autora. Apesar disso, ela ainda não tem no Brasil o prestígio de que desfruta em Portugal. Seus principais romances lançados aqui – A sibila (Nova Fronteira, 1982) e Vale Abraão (Planeta, 2004) – estão fora de catálogo. Breviário do Brasil reapresenta Agustina ao leitor brasileiro e revela a amplitude de seu olhar sobre o país. Mas também os limites desse olhar.
Quando deixa de lado as observações minuciosas de viajante para esboçar teorias sobre o Brasil e o brasileiro, Agustina às vezes deriva para generalizações sobre a identidade nacional. E expõe uma visão idealizada das relações raciais no país. Caminhando pela avenida Rio Branco, por exemplo, admira-se com a “total falta de preconceito racial”, impressão reafirmada ao longo do livro. Nesse ponto, Breviário do Brasil deve muito a Stefan Zweig, não por acaso citado já na primeira frase do ensaio. Agustina parece disposta demais a confirmar a profecia do austríaco que, ao encontrar aqui um refúgio do nazismo durante a Segunda Guerra, viu na miscigenada sociedade brasileira a promessa de “um país do futuro”. Mas ela intui o que há além das aparências: a certa altura, conclui que “o racismo é um estado de alma”.
No prefácio da edição mais recente de Brasil, um país do futuro (L&PM, 2006), Alberto Dines, biógrafo de Zweig, lembra as críticas à visão esperançosa do autor feitas desde o lançamento do livro, em 1941. E pergunta: “Zweig errou ou foi o Brasil que escolheu o modelo errado?” A leitura de Breviário do Brasil em 2016 provoca questões parecidas. Mobilizando memórias afectivas, referências literárias e mitos nacionais, Agustina constrói o retrato de um país onde indivíduos e culturas diversas convivem sem se anular, em ténue equilíbrio. Um Brasil que talvez só exista como utopia, mas que apesar disso, ou justamente por isso, assombra a viajante:
“Às vezes, no decorrer desta viagem, perguntaram-me o que penso do Brasil. Pergunta rotineira, mas a que eu respondo como se ela fosse a principal: em todo o mundo nós somos como um rebanho mandado para o matadouro enquanto nos preparam para vencedores. Mas no Brasil ainda há uma espécie de predestinação que é o que faz a esperança de um povo. (…) No Brasil, onde muitas mudanças se operam, eu notei no homem comum um respeito profundo pela bondade que, de certo modo, não se adopta ou se cultiva como identidade colectiva, mas que não está condenada. De repente, ela está presente, arde como uma lâmpada, aparece como o maior dos direitos humanos”.
GUILHERME FREITAS é editor-assistente da serrote

domingo, 26 de março de 2017

Ao Domingo Há Música

Horizonte

Ali se eleva o meu canto
É às distâncias que grito
Este delírio, este espanto
Que em tantos dias eu sinto

Pertenço aos montes longínquos
É dali que eu quero ser
Se não for por amar tanto
De que me serve viver?

Aqui me entrego
Entre a Terra e o Céu
Cumpro cantando
Um destino que é meu

E vou pensando
Entre o Céu e a Terra
Guardo, cantando,
Um sonho, uma quimera

Num oceano profundo
Abandono as minhas mágoas
Ando tão longe do mundo
Vou levada pelas águas

É este afinal o encanto
Que determina o meu ser
Se não for por amar tanto
De que me serve viver?
Teresa Salgueiro


Os sonhos transformam-se  quando o homem acredita e os projecta  na vida. Há quem lhes dê forma e som. Se Teresa Salgueiro sonhou compor as suas próprias canções não deixou de transformar o sonho em realidade. Em 2012, numa edição de autor, apresentou, em Portugal,  o seu primeiro álbum,integralmente composto por ela, letra e música. Afirma-se que  foi esse álbum, " O Mistério", que lhe abriu horizontes. 
Em 2016, volvidos quatro longos anos, gravou um excelente álbum em que assina um outro projecto de intensa luminosidade. "Horizonte" é uma colectânea de magníficas canções,iluminadas pelo brilho da sua voz, límpida e talentosa. Com Teresa Salgueiro, estão Rui Lobato (bateria, percussão e guitarra), Óscar Torres (contrabaixo), Marion Valente (acordeão) e Graciano Caldeira (guitarra). E todos eles assinam, juntamente com ela, a autoria das doze músicas.
Nas palavras de Teresa Salgueiro, Horizonte é um trabalho colectivo. Existe a ideia de todos os músicos participarem activamente na composição, chamando-os a ser autores, seja maior ou menor a sua participação. É uma questão de união. 
Teresa Salgueiro
Teresa Salgueiro, em Horizonte, do novo Álbum "Horizonte" de 2016 . O poema é de Teresa Salgueiro e a Música de Teresa Salgueiro | Rui Lobato | Óscar Torres | Marlon Valente e Graciano Caldeira. O registo foi realizado por Rui Lobato e filmado por Óscar Torres e Rui Lobato.

A LUZ

Suave brisa
Na manhã clara
Ilumina
O meu olhar
Agora

Aqui
Indelével
Transparente
Um movimento só
Contemplei
A simplicidade imensa
Do milagre em que nasci

Uma centelha ardente
Brilha mais do que o sol
A maior alegria
Está contida nos gestos de amor

Perante nós
O futuro
Não espera
É agora

A aurora esplendorosa
Principia misteriosa
Elabora a maior graça
A liberdade
De viver e alcançar
Felicidade
Teresa Salgueiro


Teresa Salgueiro, em A LUZ, do Álbum " Horizonte" , 2016, com Letra de Teresa Salgueiro e Música de Teresa Salgueiro | RuiLobato, Óscar Torres, Marlon Valente | Graciano Caldeira.

Desencontro

Desencontro
Desconcerto
Desacerto
Puro assombro
Desalento
De um reverso
Que eu acerto
no teu ombro
Que me ampara
Sem demora
Se o meu pranto
se prolonga
Se o meu canto
Se elabora

Recolhes sem um lamento
Com o sorriso que é teu
Os pedaços deste caos
Do que sou, de quem sou eu
E me cumpre desvendar
Para que a minha dor se apague
E o meu abraço se alongue
Só com leveza te afague

E mesmo que estejas longe
Eu seja a estrela que brilha
no fundo do teu olhar
Por mais que o mundo te pese
E o sonho tarde em chegar..
Teresa Salgueiro

Teresa Salgueiro, em  Desencontro, do Álbum " Horizonte" , 2016, com Letra de Teresa Salgueiro e Música de Teresa Salgueiro | Rui Lobato, Óscar Torres, Marlon Valente | Graciano Caldeira.

sábado, 25 de março de 2017

A nudez da palavra

 
"Apesar de tudo há ainda as palavras que nos metem medo. Delas irrompe a cega proliferação de imagens. Porque se ao princípio era o nome, foi dos nomes que nasceram as coisas. Esta realidade suscitada ardentemente pela palavra passa a viver sobre a rede dos nossos sentidos: respira encostada aos pulmões, lateja no sangue, crava-se na cabeça como uma coroa negra. "
Herberto Helder, in Photomaton e Vox, Porto Editora

UM CAMINHO DE PALAVRAS
“Sem dizer o fogo — vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as piso — duramente, são pedras e não são ervas. O vento é fresco: sei que é vento, mas sabe-me a fresco ao mesmo tempo que a vento. Tudo o que eu sei já lá está, mas não estão os meus passos nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu caminho.
Mas entre mim e os meus passos há um intervalo também: então invento os meus passos e o meu próprio caminho. E com as palavras de vento e de pedra, invento o vento e as pedras, caminho um caminho de palavras.

                   Caminho um caminho de palavras
                   (porque me deram o sol)
                   e por esse caminho me ligo ao sol
                   e pelo sol me ligo a mim

                   E porque a noite não tem limites
                   alargo o dia e faço-me dia
                   e faço-me sol porque o sol existe

                   Mas a noite existe
                   e a palavra sabe-o.

António Ramos Rosa, in "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001
AMOR DA PALAVRA, AMOR DO CORPO 

A nudez da palavra que te despe.
Que treme, esquiva.
Com os olhos dela te quero ver,
que não te vejo.
Boca na boca através de que boca
posso eu abrir-te e ver-te?
É meu receio que escreve e não o gosto
do sol de ver-te?
Todo o espaço dou ao espelho vivo
e do vazio te escuto.
Silêncio de vertigem, pausa, côncavo
de onde nasces, morres, brilhas, branca?
És palavra ou és corpo unido em nada?
É de mim que nasces ou do mundo solta?
Amorosa confusão, te perco e te acho,
à beira de nasceres tua boca toco
e o beijo é já perder-te.
António Ramos Rosa, in "Nos Seus Olhos de Silêncio", Lisboa:,Publicações Dom Quixote, 1970; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 116

sexta-feira, 24 de março de 2017

Amor é isto

"Amor é isto: a dialéctica entre a alegria do encontro e a dor da separação.  E neste espaço o amor só sobrevive graças a algo que se chama fidelidade: a espera do regresso. De alguma forma a gota da chuva aparecerá de novo, o vento permitirá que velejemos de novo, mar afora.  Morte e ressurreição. Na dialéctica do amor, a própria dialéctica divina.  Quem não pode suportar a dor da separação não esta preparado para o amor. Porque amor é algo que não se tem nunca. É o vento de graça.  Aparece quando quer, e só nos resta ficar à espera. E quando ele volta, a alegria volta com ele. E sentimos então que valeu a pena suportar a dor da ausência, pela alegria do reencontro."
Rubem Alves,  "Onde mora o Amor", in  'Tempus Fugit'. São Paulo: Edições Paulus, 1990. 

quinta-feira, 23 de março de 2017

Somente as palavras contam (cont.)

                              Umberto Eco em 1977 (Foto: Enrico Scuro)

Umberto Eco: 14 lições para identificar o neofascismo e o fascismo eterno
Umberto Eco | Roma - 21/02/2016 - 16h21
"No curso daqueles vinte anos, a poesia dos herméticos representou uma reacção ao estilo pomposo do regime: a estes poetas era permitido elaborar  protestos literários dentro da torre de marfim. O sentimento dos herméticos era exactamente o contrário do culto fascista do optimismo e do heroísmo. O regime tolerava esta distensão evidente, embora socialmente imperceptível, porque não prestava atenção suficiente ao um jargão tão obscuro.
O que não significa que o fascismo italiano fosse tolerante. Gramsci foi mantido na prisão até a morte, Matteotti e os irmãos Rosselli foram assassinados, a liberdade de imprensa suspensa, os sindicatos desmantelados, os dissidentes políticos confinados em ilhas remotas, o poder legislativo tornou-se pura ficção e o executivo (que controlava o judiciário, assim como os media) emanava directamente as novas leis, entre as quais a da defesa da raça (apoio formal italiano ao Holocausto).
A imagem incoerente que descrevi não era devida à tolerância: era um exemplo de desconjuntamento político e ideológico. Mas era um “desconjuntamento ordenado”, uma confusão estruturada. O fascismo não tinha bases filosóficas, mas do ponto de vista emocional era firmemente articulado a alguns arquétipos.
Chegamos agora ao segundo ponto de minha tese. Existiu apenas um nazismo, e não podemos chamar de “nazismo” o falangismo hipercatólico de Franco, pois o nazismo é fundamentalmente pagão, politeísta e anticristão, ou não é nazismo. Ao contrário, pode-se jogar com o fascismo de muitas maneiras, e o nome do jogo não muda. Acontece com a noção de “fascismo” aquilo que, segundo Wittgenstein, acontece com a noção de “jogo”. Um jogo pode ser ou não competitivo, pode envolver uma ou mais pessoas, pode exigir alguma habilidade particular ou nenhuma, pode envolver dinheiro ou não. Os jogos são uma série de actividades diversas que apresentam apenas alguma “semelhança de família”:
1 - 2 - 3 - 4
abc bcd cde def
Suponhamos que exista uma série de grupos políticos. O grupo 1 é caracterizado pelos aspectos abc, o grupo 2, pelos aspectos bcd e assim por diante. 2 é semelhante a 1 na medida em que têm dois aspectos em comum. 3 é semelhante a 2 e 4 e é semelhante a 1 (têm em comum o aspecto c). O caso mais curioso é dado pelo 4, obviamente semelhante a 3 e a 2, mas sem nenhuma característica em comum com 1. Contudo, em virtude da ininterrupta série de decrescentes similaridades entre 1 e 4, permanece, por uma espécie de transitoriedade ilusória, um ar de família entre 4 e 1.
O termo “fascismo” adapta-se a tudo porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará sempre a ser reconhecido como fascista. Tirem do fascismo o imperialismo e teremos Franco ou Salazar; tirem o colonialismo e teremos o fascismo balcânico. Acrescentem ao fascismo italiano um anticapitalismo radical (que nunca fascinou Mussolini) e teremos Ezra Pound. Acrescentem o culto da mitologia céltica e o misticismo do Graal (completamente estranho ao fascismo oficial) e teremos um dos mais respeitados gurus fascistas, Julios Evola.
A despeito dessa confusão, considero possível indicar uma lista de características típicas daquilo que eu gostaria de chamar de “Ur-Fascismo”, ou “fascismo eterno”. Tais características não podem ser reunidas num sistema; muitas se contradizem entre si e são típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo. Mas é suficiente que uma delas se apresente para fazer com que se forme uma nebulosa fascista.
1.   A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo. Não somente foi típico do pensamento contra reformista católico depois da Revolução Francesa, mas nasceu no final da idade helenística como uma reacção ao racionalismo grego clássico.
Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões diversas (todas aceites com indulgência pelo Panteon romano) começaram a sonhar com uma revelação recebida na aurora da história humana. Essa revelação permaneceu longo tempo escondida sob o véu de línguas então esquecidas. Havia sido confiada aos hieróglifos egípcios, às runas dos celtas, aos textos sacros, ainda desconhecidos, das religiões asiáticas.
Essa nova cultura tinha que ser sincretista. “Sincretismo” não é somente, como indicam os dicionários, a combinação de formas diversas de crenças ou práticas. Uma combinação assim deve tolerar contradições. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e, quando parecem dizer coisas diferentes ou incompatíveis, é apenas porque todas aludem, alegoricamente, a alguma verdade primitiva.
Como consequência, não pode existir avanço do saber. A verdade já foi anunciada de uma vez por todas, e só podemos continuar a interpretar a sua obscura mensagem. É suficiente observar o ideário de qualquer movimento fascista para encontrar os principais pensadores tradicionalistas. A gnose nazi nutria-se de elementos tradicionalistas, sincretistas ocultos. A mais importante fonte teórica da nova direita italiana Julius Evola, misturava o Graal com os Protocolos dos Sábios de Sião, a alquimia com o Sacro Império Romano. O próprio facto de que, para demonstrar a sua abertura mental, a direita italiana tenha recentemente ampliado seu ideário juntando De Maistre, Guenon e Gramsci é uma prova evidente de sincretismo.
Se remexerem nas prateleiras que nas livrarias americanas trazem a indicação “New Age”, irão encontrar até mesmo Santo Agostinho e, que eu saiba, ele não era fascista. Mas o próprio facto de juntar Santo Agostinho e Stonehenge, isto é um sintoma de Ur-Fascismo.
2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. Tanto os fascistas como os nazis adoravam a tecnologia, enquanto os tradicionalistas em geral recusam a tecnologia como negação dos valores espirituais tradicionais. Contudo, embora o nazismo tivesse orgulho de seus sucessos industriais, o seu elogio da modernidade era apenas o aspecto superficial de uma ideologia baseada no “sangue” e na “terra” (Blut und Boden). A recusa do mundo moderno era camuflada como condenação do modo de vida capitalista, mas referia-se principalmente à rejeição do espírito de 1789 (ou 1776, obviamente). O iluminismo, a idade da Razão eram vistos como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como “irracionalismo”. 
3. O irracionalismo depende também do culto da acção pela acção. A acção é bela em si, portanto, deve ser realizada antes de e sem nenhuma reflexão. Pensar é uma forma de castração. Por isso, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas. Da declaração atribuída a Goebbels (“Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola”) ao uso frequente de expressões como “Porcos intelectuais”, “Cabeças ocas”, “Snobes radicais”, “As universidades são um ninho de comunistas”, a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo. Os intelectuais fascistas oficiais estavam empenhados principalmente em acusar a cultura moderna e a inteligência liberal de abandono dos valores tradicionais. 
4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. O espírito crítico opera distinções, e distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica percebe o desacordo como instrumento de avanço dos conhecimentos. Para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição. 
5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo cresce e busca o consenso desfrutando e exacerbando o natural medo da diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou que está se tornando fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição. 
6. O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. O que explica por que uma das características dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise económica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos. Em nosso tempo, em que os velhos “proletários” estão se transformando em pequena burguesia (e o lumpesinato se auto exclui da cena política), o fascismo encontrará nessa nova maioria o seu auditório. 
7. Para os que se vêem privados de qualquer identidade social, o Ur-Fascismo diz que o único privilégio é o mais comum de todos: ter nascido no mesmo país. Esta é a origem do “nacionalismo”. Além disso, os únicos que podem fornecer uma identidade às nações são os inimigos. Assim, na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complot, possivelmente internacional. Os seguidores têm que se sentir sitiados. O modo mais fácil de fazer emergir um complot é fazer apelo à xenofobia. Mas o complot tem que vir também do interior: os judeus são, em geral, o melhor objectivo porque oferecem a vantagem de estar, ao mesmo tempo, dentro e fora. Na América, o último exemplo de obsessão pelo complot foi o livro The New World Order, de Pat Robertson. 
8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Quando eu era criança ensinavam-me que os ingleses eram o “povo das cinco refeições”: comiam mais frequentemente que os italianos, pobres mas sóbrios. Os judeus são ricos e ajudam-se uns aos outros graças a uma rede secreta de mútua assistência. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo. Assim, graças a um contínuo deslocamento de registo retórico, os inimigos são, ao mesmo tempo, fortes demais e fracos demais. Os fascismos estão condenados a perder as guerras, pois são constitutivamente incapazes de avaliar com objectividade a força do inimigo. 
9. Para o Ur-Fascismo não há luta pela vida, mas antes “vida para a luta”. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente. Contudo, isso traz consigo um complexo de Armagedon: a partir do momento em que os inimigos podem e devem ser derrotados, tem que haver uma batalha final e, em seguida, o movimento assumirá o controle do mundo. Uma solução final semelhante implica uma sucessiva era de paz, uma idade de Ouro que contestaria o princípio da guerra permanente. Nenhum líder fascista conseguiu resolver essa contradição. 
10. O elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reaccionária, enquanto fundamentalmente aristocrática. No curso da história, todos os elitismos aristocráticos e militaristas implicaram o desprezo pelos fracos. O Ur-Fascismo não pode deixar de pregar um “elitismo popular”. Todos os cidadãos pertencem ao melhor povo do mundo, os membros do partido são os melhores cidadãos, todo cidadão pode (ou deve) tornar-se membro do partido. Mas patrícios não podem existir sem plebeus. O líder, que sabe muito em que seu poder não foi obtido por delegação, mas conquistado pela força, sabe também que a sua força baseia-se na debilidade das massas, tão fracas que têm necessidade e merecem um “dominador”. No momento em que o grupo é organizado hierarquicamente (segundo um modelo militar), qualquer líder subordinado despreza os subalternos e cada um deles despreza, por sua vez, os seus subordinados. Tudo isso reforça o sentido de elitismo de massa. 
11. Nesta perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Em qualquer mitologia, o “herói” é um ser excepcional, mas na ideologia Ur-Fascista o heroísmo é a norma. Este culto do heroísmo é estreitamente ligado ao culto da morte: não é por acaso que o mote dos falangistas era: “Viva la muerte!” À gente normal diz-se que a morte é desagradável, mas é preciso enfrentá-la com dignidade; aos crentes, diz-se que é um modo doloroso de atingir a felicidade sobrenatural. O herói Ur-Fascista, ao contrário, aspira à morte, anunciada como a melhor recompensa para uma vida heróica. O herói Ur-Fascista espera impacientemente pela morte. E sua impaciência, é preciso ressaltar, consegue na maior parte das vezes levar os outros à morte. 
12. Como tanto a guerra permanente como o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o Ur-Fascista transfere a vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem do machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos sexuais não-conformistas, da castidade à homossexualidade). Como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o herói Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico: os jogos de guerra são devidos a uma inveja pênis permanente. 
13. O Ur-Fascismo baseia-se em um “populismo qualitativo”. Numa democracia, os cidadãos gozam de direitos individuais, mas o conjunto de cidadãos só é dotado de impacto político do ponto de vista quantitativo (as decisões da maioria são acatadas). Para o Ur-Fascismo os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos e “o povo” é concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica que exprime “a vontade comum”. Como nenhuma quantidade de seres humanos pode ter uma vontade comum, o líder apresenta-se como o seu intérprete. Tendo perdido o  poder de delegar, os cidadãos não agem, são chamados apenas pars pro toto, para assumir o papel de povo. O povo é, assim, apenas uma ficção teatral. Para ter um bom exemplo de populismo qualitativo, não precisamos mais da Piazza Venezia ou do estádio de Nuremberg.
Em nosso futuro desenha-se um populismo qualitativo TV ou internet, no qual a resposta emocional de um grupo seleccionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a “voz do povo”. Em virtude de seu populismo qualitativo, o Ur-Fascismo deve opor-se aos “pútridos” governos parlamentares. Uma das primeiras frases pronunciadas por Mussolini no Parlamento italiano foi:“Eu poderia ter transformado esta assembleia surda e cinza num acampamento para meus regimentos”. De facto, ele logo encontrou alojamento melhor para seus regimentos e pouco depois liquidou o Parlamento. Cada vez que um político põe em dúvida a legitimidade do Parlamento por não representar mais a “voz do povo”, pode-se sentir o cheiro de Ur-Fascismo. 
14. O Ur-Fascismo fala a “novilíngua”. A “novilíngua” foi inventada por Orwell em 1984, como língua oficial do Ingsoc, o Socialismo Inglês, mas certos elementos de Ur-Fascismo são comuns a diversas formas de ditadura. Todos os textos escolares nazis ou fascistas baseavam-se  num léxico pobre e numa sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico. Devemos, porém estar prontos a identificar outras formas de novilíngua, mesmo quando tomam a forma inocente de um talk-show popular. 
Depois de indicar os arquétipos possíveis do Ur-Fascismo, permitam-me concluir. Na manhã de 27 de Julho de 1943 foi-me dito que, segundo informações lidas na rádio, o fascismo havia caído e Mussolini tinha sido feito prisioneiro. A minha mãe mandou-me comprar o jornal. Fui ao jornaleiro mais próximo e vi que os jornais estavam lá, mas os nomes eram diferentes. Além disso, depois de um breve olhar sobre os títulos, percebi que cada jornal dizia coisas diferentes. Comprei um, ao acaso, e li uma mensagem impressa na primeira página, assinada por cinco ou seis partidos políticos como Democracia Cristã, Partido Comunista, Partido Socialista, Partido de Acção, Partido Liberal. Até aquele momento pensei que só existisse um partido em todas as cidades e que na Itália só existisse, portanto, o Partido Nacional Fascista.
Eu estava descobrindo que, no meu país, podiam existir diversos partidos ao mesmo tempo. E não só isso: como eu era um garoto esperto, logo me dei conta de que era impossível que tantos partidos tivessem aparecido de um dia para o outro. Entendi assim que eles já existiam como organizações clandestinas.
A mensagem celebrava o fim da ditadura e o retorno à liberdade: liberdade de palavra, de imprensa, de associação política. Estas palavras, “liberdade”, “ditadura” — Deus meu —, era a primeira vez em toda a minha vida que eu as lia. Em virtude dessas novas palavras renasci como homem livre ocidental.
Devemos ficar atentos para que o sentido dessas palavras não seja esquecido de novo. O Ur-Fascismo ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis. Seria muito confortável para nós se alguém surgisse na boca de cena do mundo para dizer: “Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas!”. Ai de mim, a vida não é fácil assim! O Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o indicador para cada uma de suas novas formas — a cada dia, em cada lugar do mundo. Cito ainda as palavras de Roosevelt: “Ouso dizer que, se a democracia americana parasse de progredir como uma força viva, buscando dia e noite melhorar, por meios pacíficos, as condições de nossos cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país” (4 de Novembro de 1938). Liberdade, liberação são uma tarefa que não acaba nunca. Que seja este o nosso mote: “Não esqueçam”.
E permitam-me acabar com uma poesia de Franco Fortini:
Sulla spalletta del ponte
Le teste degli impiccati
Nell'acqua della fonte
La bava degli impiccati
Sul lastrico del mercato
Le unghie dei fucilati
Sull'erba secca del prato
I denti dei fucilati
Mordere l'aria mordere i sassi
La nostra carne non à più d'uomini
Mordere l'aria mordere i sassi
Il nostro cuore non à più d'uomini.

Ma noi s'è letto negli occhi dei morti
E sulla terra faremo libertà
Ma l'hanno stretta i pugni dei morti
La giustizia che si farà.
Na amurada da ponte
A cabeça dos enforcados
Na água da fonte
A baba dos enforcados
No calçamento do mercado
As unhas dos fuzilados
Sobre a grama seca do prado
Os dentes dos fuzilados
Morder o ar morder as pedras
Nossa carne não é mais de homens
Morder o ar morder as pedras
Nosso coração não é mais de homens

Mas lemos nos olhos dos mortos
E sobre a terra a liberdade havemos de fazer
Mas estreitaram-na nos punhos os mortos
A justiça que se há de fazer.
Umberto Eco, O Fascismo Eterno, in Cinco Escritos Morais,
Tradução: Eliana Aguiar, Editora Record, Rio de Janeiro, 2002.