Pomos de lado cartas, para nunca mais as voltarmos a ler e, por fim, destruimo-las, por razões de discrição, e assim desaparece a mais bela , mais imediata respiração da vida, irrecuperavelmente, para nós e para os outros
Goethe, As afinidades electivas
"Conheci, pessoalmente, José Régio, por puro acidente. Quero com isto dizer que o não conheci por me ter posto à procura de o conhecer. Nunca fui de andar a correr atrás de glórias , mesmo de glórias que eu admirasse. Nunca fui, por outras palavras, um caçador de troféus com que me fizesse fotografar. Nunca manejei uma máquina fotográfica, com que fosse preparando uma fotografia-a-haver. Nunca acreditei em me dar hipotético acréscimo de estatuto, por uma estratégia de proximidade fotográfica ( ou outra) de outros de maior estatuto que o meu. Trata-se, digamos, de uma questão de pudor e, também , se quiserem , de sentido estético. No meu código de conduta, isso não se faz. É feio correr atrás da glória dos outros, para construir, com ela, um pouco da nossa própria. É, além do mais, grotesco. Nenhuma glória durará excessivamente, porque a aventura humana, neste planeta - e o próprio planeta - têm o seu fim garantido , a mais ou menos curto prazo. Nada ficará disto, nem sequer a memória disto. Acho pois bem que alguma coisa se preserve, para melhor instrução dos vindouros próximos, mas cabe aqui, ao pudor, uma função amaciadora. Nada de exageros de ambição: devemos estar conscientes de que trabalhamos para herdeiros de um futuro de duração limitada. Convém ser modesto, isto é, realista. Deixemos, com carinho, mas sabendo muito bem que não há, para elas , eternidade. Elas - com as nossas visões , emoções, pensamentos, descobertas - irão durar o que puderem durar e que não será , em termos galácticos , mais do que um instante.Tudo passa.
Conheci, pois, José Régio, por acidente. Se quiserem, por castigo. Fizera um curso para oficial miliciano, em Mafra, onde fui um cadete rebelde, desobediente e desrespeitador da disciplina militar. Acumulei castigos que me recusei a cumprir. Poderia ter pago uma factura pesada, mas não cheguei a pagá-la porque o comandante da unidade era um homem benigno ( encontrava-se, além do mais, seriamente doente). Tive boas ( muito boas) classificações, nas disciplinas técnicas, mas fui atirado para o fim da lista, em matéria de comportamento. Resultado: em vez de ser colocado em Lisboa , como me convinha ( e pedi), para concluir o último ano do curso de Engenharia, mandaram-me para um batalhão perto da fronteira alentejana, a cinco horas de comboio de Lisboa ( O Batalhão de Caçadores nº 1, em Portalegre). A notícia perturbou-me e, simultaneamente, acenou-me com uma possível compensação. Perturbou-me porque estar longe de Lisboa me iria dificultar muito as idas necessárias ao Instituto Superior Técnico, para trabalhos práticos, uma ou outra aula , exames, etc.. O aceno de esperança compensatória tinha que ver com José Régio, que vivia grande parte do ano em Portalegre , como professor de liceu, e cuja obra eu admirava desde os meus dezasseis anos , em Lourenço Marques. A Velha Casa - o que dela já existia, nessa altura: os dois primeiros volumes - empolgara-me, pelo poder dramático, pela excelência e minúcia da análise psicológica, pelo estilo, pela promessa de uma longa aprendizagem... Afinal , talvez o castigo militar viesse a valer a pena e eu fosse ao Alentejo fazer " le bon usage des maladies", como recomendara o grande Pascal. e , com efeito, assim viria a ser.
(...) Logo um ou dois dias depois de ter chegado a Portalegre e de me ter acomodado na espelunca que era o Quartel de S. Francisco, antigo convento a cair aos bocados , pertinho do cemitério, e da casa do Régio ( tudo aquilo algo sinistro e ventoso, como no Vento dos Vendavais de Emily Brontë), o meu colega de tropa Rui Serrão ( a estudar Direito) veio, alvoroçado , perguntar-me: " - Queres conhecer o Régio? " Fiquei logo a abanar. Claro que queria conhecer o Régio! Nem eu queria outra coisa! Como? Onde ? Quando? Aquilo realmente calhava-me : virem assim oferecer-me o Régio numa bandeja... a mim que não era nada dado a andar a correr atrás das eminências! O Rui esclareceu: tinha estado no Café Central, depois do almoço, com outros aspirantes milicianos da nova fornada, eis senão quando se aproximara da mesa deles um Dr. Feliciano Falcão, simpático e sorridente , que lhes perguntara se, por acaso, quereriam conhecer o José Régio. O Rui dissera logo que sim e que tinha um outro colega ( eu) que, por certo, desejaria o mesmo. Combinamos , pois, a seguir ao jantar desse dia , darmos um salto ao Café Central, mais ou menos a meio da Rua Direita.
(...) Como pouco anos antes estivera ali um aspirante militar de nome David Mourão-Ferreira, que rendera para tertúlias , literaturas, convívios e amizades, o Dr. Falcão , ao ver , agora, ali no Café, uns oficiais de conversa menos boçal, pensou que pudessem renovar os anos de ouro do David ou algo de mais ou menos semelhante. Daí a simpática aproximação.
(...) Seja como for, depois do jantar, eu e o Rui Serrão dirigimo-nos para o Café. Era inverno e o Régio já lá estava, sentado , de sobretudo, presidindo, com bonomia, à tertúlia, enrolando vagarosamente o cigarro, enquanto respondia às perguntas daquela assembleia visivelmente suspensa das suas palavras: o Dr. Falcão, o pintor Arsénio Rodrigues, o educadissimo Sr. Pombeiro e outros . Em noites subsequentes apareceria também, com frequência, o excelente capitão Saraiva e a sua simpática mulher, Luísa, que fora aluna do Régio no liceu de Portalegre. Não foi também infrequente a presença do meu colega ( e hoje amigo) de Batalhão, Mário Carrinho ( apesar de um namoro intercidades, que lhe comia o melhor do tempo livre ao telefone...) .Feitas as apresentações, sentámo-nos, entrando com dificuldade naquele círculo já bastante apertado, eu, intimidado que baste, por ter à minha frente aquele monumento da literatura que me dera tantas horas de deslumbramento e descoberta. O Régio ia-nos deitando à sorrelfa um ilhar perscrutador , às vezes disparado, de soslaio, a partir daqueles "olhos sulfúricos, esfíngicos e belos", que narcisicamente cantara no primeiro dos Poemas de Deus e do Diabo. De tal maneira, que , à dos do jogo da cabra cega, entornei, para começar, uma chávena de café! Bonito, disse eu com os meus botões: começas bem! Nunca me esquecerei dessa noite: embora nervoso, lá procurei escorva a conversa, dirigindo ao grande escritor perguntas aos baldes. Ele era um conversador estimulante, extremamente articulado e procurando, visivelmente, formular, diante de nós, um pensamento que ia construindo, com cuidado mas sem pretensões de brilho ( que , aliás, detestava) ou de originalidade rebuscada. Aquilo cheirava mesmo a seriedade, sem vestígios de trapaça. O Régio que ali nos falava ficava igualzinho ao personagem que a obra inculcava. Vi logo que a minha estadia em Portalegre, com todos os seus inconvenientes ( eram de monta!) ia valer muito a pena .
Falar-lhe n' A Velha Casa, com o pormenor e a paixão com que lhe falei, obviamente agradou-lhe. Sentia-se, como ficcionista, um mal-amado da crítica. E com mais do que alguma razão.
Conversámos pela noite dentro e eu fui metendo a minha colher em minúcias da obra poética, ficcional, teatral e ensaística, que tanto me tinha cativado, perturbado e ensinado. Régio não se fazia rogado ao assalto da minha curiosidade e percebia-se que era sensível à minúcia e ao cuidado das minhas leituras. À saída, eu, ele e o Rui Serrão fomos juntos: íamos , Rua direita acima, na mesma direcção, visto que, como já disse, o Quartei de S. Francisco ficava a dois passos da casa de Régio.
Daí em diante, as reuniões no Central tornaram-se diárias.
(...) Falámos abundantemente de poesia, de teatro, de ficção, de filosofia... Régio andava a afastar-se cada vez mais da literatura francesa e, sobretudo, da Nouvelle revue française, que lhe parecia , na fase posterior à Segunda Guerra Mundial, dominada por uns peralvilhos brilhantes, superficiais e irresponsáveis... Pendia mais para o romance inglês e russo e menos para o francês ( ressalvando, é claro, gigantes como Stendhal e Proust). O brilho e a facilidade francesas incomodavam-no. A rapidez com que faziam extrapolações e punham de pé, como dogma, uma teoria com pés de barro, encrespava-o. E o meio literário lisboeta, vastamente amamentado nas leviandades gaulesas,ia ser, no quarto volume d'A Velha Casa, submetido , por Lelito, a uma análise de uma crueldade implacável e demolidora.
(...) Daí a pouco tempo terminaria o meu serviço militar e iria para Lisboa, onde faria os estágios que me faltavam para obter o diploma de engenheiro electrotécnico. (...) em 21 de Agosto , depois de ter recusado um bom emprego em Alverca, parti para Lourenço Marques, à la recherche du temps perdu.
(...)Fui mantendo com Régio um contacto epistolar não demasiado assíduo, mas, em todo o caso, continuado, acrescentado de duas visitas que lhe fiz , em idas minhas a Portugal, em 1963 e 1968. É esse acervo de cartas suas , a que junto as que lhe escrevi, que hoje aqui se fixa em livro, por me parecer de interesse humano e literário. Nele, Régio dá eminente testemunho da sua integridade, frontalidade, inteligência e sensibilidade. E da sua fidelidade e amizade. A sua insistência amiga - e quase severa - para que eu levasse " mais a sério" a minha vocação de escritor ficar-me-á , para sempre, como um remorso. De facto , só comecei a sair de uma certa forma - embora valorosa - de amadorismo literário, já depois da morte do escritor. E comecei a fazê-lo, pagando , assim, a sua insistência amiga e bem-intencionada, com a redacção do meu volumoso José Régio - A Obra e o Homem. (...)
As correspondências de escritores podem ser - e são-no muitas vezes - um retrato penoso de egos não domesticados e de vaidadezinhos torpes. Esta , de Régio, não envergonha o homem que fez a obra, o qual é, em tudo, igual ao homem que a obra faz supor. Dá-nos um discurso límpido, originado numa alma atormentada e rica. Por isso, faço questão de o não deixar esquecido.
Eugénio Lisboa
S. Pedro do Estoril, Outubro de 2013
Eugénio Lisboa, em Prólogo à " Correspondência com Eugénio Lisboa" "José Régio - Obra Completa", INCM,1ª edição, Maio de 2016, pp 9,10,11,14,17,19
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