sexta-feira, 23 de setembro de 2016

O luto, a dor de quem fica

                 
                                          Le deuil: réaction à la perte d'un être aimé
                                                                                    Sigmund Freud
A morte tem chegado neste tempo último e, com  ela, redobra-se a soberana clarividência da vulnerabilidade, da volatilidade   da nossa aprazada permanência. Têm sido  tantos os que partem e que pensávamos sempre  entre nós. Sentir a morte daqueles que amamos , daqueles que admiramos, daqueles que nos tocaram, daqueles que cresceram connosco é sentir a  dor que sufoca e fragiliza. Uma dor tão dorida que o luto se apodera de nós e de  tudo o que nos rodeia. E quando o amor sempre foi celebrado , todos os  caminhos  se fecham e apenas a evocação do outro permanece.  É a fulminante incerteza  . É a perda de um norte,  o  ruir de um  chão e a singular visão de um futuro indesejado. 
Vários escritores têm escrito sobre a morte, sobre o luto que provoca em quem fica. Um estado de sofrimento que exige solidão, recato, afastamento.Uma escrita intima , dolorosa  fecundada no âmago da perda.
Eugénio Lisboa  publicou, no JL do final de Agosto ( nº 1197) , algumas entradas de um diário de luto, sob o título de Páginas do diário de um luto.  Um registo pungente em memória da mulher, Maria Antonieta,  que acabara de falecer. A dor ,  a angústia da ausência do ser amado perpassa insistente e dilacerante em todas as páginas. Uma ausência que surge abrupta  e que aniquila  pela  trágica e evidente certeza . A partida  de quem  foi a constante e cúmplice presença ao longo de uma vida  é  quase um abandono inverosímil mas real.

S. Pedro do Estoril , 3 de Agosto
(...)Aconteceu o inconcebível: partires, deixares-me  sem ti. Mas partiste , no teu estilo próprio: elegante , sem alarde, determinada.(...)
Vale d'El Rei, Lagoa, 4 de Agosto
Parece-me cada vez mais inconcebível que a MA nos tenha deixado ( me tenha deixado). Saberei viver sem ela? Será viver sem ela - viver?
"Ma mère s'éloigne doucement", ao fim de 13 anos de nos ter deixado. "Doucement, mais elle s´"eloigne". Irá acontecer o mesmo à MA? Não, porque não viverei muito tempo. Mas só um pouco que fosse, esse éloignement, martirizar-me-ia. O afastamento pode ser terapêutico, mas rejeito-o com pavor e indignação.

O luto pode ser  uma "região atroz" que aprisiona  e da qual não se quer evadir, nem se deseja libertar.   
A dor imparável e aliada  cresce com a ausência nos dias que se seguem.E  essa dor passa a ser nossa  porque nos  toca profundamente, sem permissão e resistência. 

Vale d'El Rei, Lagoa, 6 de Agosto
(...) Estás em tudo e em todo o lado. E, ao mesmo tempo,  não estás. Este teu não estar, não estando, é o meu perpétuo tormento.
(...) Tudo , neste momento, me reconduz a ti. Não há nada em que não estejas.
Só tinha desejado uma coisa:  viver mais dois ou três dias  do que tu, tal era o meu medo de te deixar sozinha e diminuída. Vivia literalmente entre dois medos : o de ir antes de ti e o de ir depois de ti. São estas as escolhas  terríveis  da nossa idade: ir antes ou ir depois. Qual das escolhas é a pior? Não há imaginação que decida.(...)
S. Pedro do Estoril, 9 de Agosto
De regresso a casa, olho para uma estante: cada livro, cada objecto liga-me a um lugar onde foi adquirido - contigo. Um lembra-me Edimburgo, outro, Londres, outro, ainda, Estocolmo. Não é possível separar-me de ti.

A separação, o tormento de quem fica. A impossibilidade de esquecer, de não ter  o mundo onde tudo era a dois. Quer lembrá-la todos os dias. É a sua memória viva e dela não pretende abdicar. Exige-se só, apenas com ela.
Escrita íntima e dolorosa. Bela no desenho do sentir e na comoção que enforma as palavras. 
Eugénio Lisboa está de luto e, com ele,  ficamos todos nós. 
Roland Barthes  iniciou  também  um "Journal de deuil", no   dia seguinte ao da morte de sua mãe, 25 de Outubro de 1977 e terminou-o a  15 de Setembro de 1979.Tinha cuidado da mãe, ao longo da doença que a vitimou. Entregou-se inteiro a essa missão. Com o seu desaparecimento, tudo acabou. A  morte da mãe trouxe-lhe um sofrimento intenso e inseparável. Não a queria esquecer. Não queria regressar ao tempo em que era ela que cuidava dele. Queria manter as limitações que a doença da mãe lhe tinha imposto. Não pretendia os ritos do consolo: os pêsames, os remédios, as viagens... Queria recordá-la para sempre.
"27 de Outubro
(...)
Cada manhã, por volta das seis e meia, lá fora no escuro, o ruído de ferragens das latas de lixo.
Ela dizia com alívio: a noite finalmente acabou (tinha sofrido durante a noite, sozinha, coisa atroz).
(...)
Todos calculam - eu o sinto - o grau de intensidade do luto. Mas é impossível (...) medir quanto alguém está atingido por ele.
29 de Outubro
Ideia - assombrosa, mas não desoladora - de que ela não foi "tudo" para mim. Sem ela , eu não teria escrito uma obra. Desde que eu  cuidava dela, há seis meses, efectivamente ela era "tudo" para mim, e esqueci completamente que havia escrito. Eu estava totalmente por conta dela. Antes, ela  fazia-se transparente para que eu pudesse escrever.
(...)
Tomando estas notas, confio-me à banalidade que há em mim.
(...)

Os desejos que tive antes da sua morte (durante  a sua doença) agora não podem mais ser realizados, pois isso significaria que é  a sua morte que me permite realizá-los - que  a sua morte poderia ser, em certo sentido, libertadora em  relação a meus desejos. Mas a sua morte mudou-me, já não desejo o  que desejava." Roland Barthes, in " Diário de luto", Edições 70

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