quarta-feira, 7 de setembro de 2016

O ano em que nasci foi áureo

 
“ Até meados do áureo mês de Outubro me trouxe minha mãe dentro de si, mas bem vistas as coisas só o ano em que nasci é que foi áureo, enquanto os restantes anos da década de vinte, antes e depois dele, quando muito tremeluziram ou tentaram abafar o quotidiano numa miscelânea de cores. Mas que é que contribuiu para a glória do ano em que nasci? Talvez a moeda, o marco do Reich, por se ter estabilizado? Ou O Ser e o Tempo, um livro que apareceu no mercado carregado de imponente verbosidade, depois do que todo e qualquer aprendiz de literato se pôs incipientemente a heideggerizar?
   É verdade: depois da guerra, da fome e da inflação que se encontravam patentes nos mutilados parados pelos esquinas e, em geral, na classe média empobrecida, era permitido celebrar a vida como «desocultação», ou como «Ser para a morte», de taça de champanhe em riste ou passá-la na conversa ao sabor de mais um copito de martini. Mas de áureas nada tinham certamente aquelas imponentes palavras empoladas até ao final existencial. Mais ouro tinha o tenor Richard Tauber na voz. E mal tocava o gramofone na sala, minha mãe, que o amava ardentemente à distância, desde que eu nasci e durante toda a vida — morreu ainda nova —, trazia nos lábios o Zarewitsch então aplaudido em todos os teatros de opereta: «Na margem do Volga está um soldado...» ou «Será que também me esqueceste por lá...» ou «Só,  de novo só...» até ao final agridoce «Aqui me encontro na gaiola doirada...»
   Mas era tudo ouro falso. Realmente douradas eram as girls, só as girls. Até lá na nossa terra, em Danzig, elas actuavam em digressão naqueles fatos brilhantes, não exactamente no Teatro Municipal, mas no Casino de Zoppot. Mas Max Kauer, que com o seu médium Susi tinha algum êxito nas Variedades como vidente e ilusionista, a ponto de poder passar revista às capitais europeias nos autocolantes que lhe cobriam as malas de viagem, e que eu mais tarde tratava por tio Max, por ser amigo do irmão de meu pai, Friedel, desde os tempos de escola, fazia um sinal cansado com a mão, quando se falava nas «girls em digressão por cá». «Imitação barata!»
   Quando minha mãe ainda estava grávida de mim, parece que ele exclamou «Vocês não podem deixar de ir visitar Berlim. Há sempre coisas fora do vulgar!» e imitou com os longos dedos de mágico as Tiller-Girls, ou melhor, as suas intermináveis pernas, mimando Chaplin ao mesmo tempo. Sabia descrever as «pernaças» das girls. Afirmava serem «esculturalmente perfeitas». Depois falava da «exactidão rítmica» e de «momentos culminantes» no Admiralspalast. Também mencionava, a propósito do programa do espectáculo, alguns nomes impressos a ouro: «como aquela deliciosa Trude Hesterberg, com a sua pequena turpe, pôs em música jazz os Salteadores de Schiller e deles fez um bailado engraçadíssimo.» Ouvíamo-lo falar com entusiasmo das Chocolate Kiddies que havia visto no Skala ou no Jardim de Inverno. «E em breve há-de vir Josephine Baker, aquele pedaço de mulher selvagem, em digressão a Berlim. A desocultação sob a forma de dança, como lá diz o filósofo...»
   Minha mãe, que gostava de dar largas às suas recordações, transmitiu-me o entusiasmo do tio Max: «Aliás dança-se muito bem em Berlim, não fazem mais que dançar. Não podem deixar de cá vir ver uma revista do Haller com a La Jana a dançar diante do pano de cana bordado a ouro.» Após o que se punha de novo a imitar as Tiller-Girls com os seus longos dedos de mágico. E minha mãe, a quem eu já pesava bastante, há-de ter dito a sorrir: «Talvez mais tarde, quando o negócio correr melhor.» Mas até Berlim é que nunca conseguiu ir.
   Só uma vez, por volta de finais dos anos trinta, quando já não cintilavam nem uns pozinhos dourados dos anos vinte, é que deixou a loja de artigos coloniais à guarda de meu pai e foi de viagem às montanhas, até Salzkammergut, no âmbito do programa «Vigor através da Alegria». Não faltavam por lá calças de cabedal. Até dançaram sapateado à tirolesa."
Günter Grass, (1927-2015) , in O Meu Século, 2.ª edição, tradução de Maria Antonieta Mendonça, Editorial Notícias, Junho de 2001, pp. 76-77

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