É verdade: depois da guerra, da fome e da inflação que se encontravam
patentes nos mutilados parados pelos esquinas e, em geral, na classe média
empobrecida, era permitido celebrar a vida como «desocultação», ou como «Ser
para a morte», de taça de champanhe em riste ou passá-la na conversa ao sabor
de mais um copito de martini. Mas de áureas nada tinham certamente aquelas imponentes
palavras empoladas até ao final existencial. Mais ouro tinha o tenor Richard
Tauber na voz. E mal tocava o gramofone na sala, minha mãe, que o amava
ardentemente à distância, desde que eu nasci e durante toda a vida — morreu
ainda nova —, trazia nos lábios o Zarewitsch então aplaudido em todos os
teatros de opereta: «Na margem do Volga está um soldado...» ou «Será que também
me esqueceste por lá...» ou «Só, de novo só...» até ao final agridoce
«Aqui me encontro na gaiola doirada...»
Mas era tudo ouro falso. Realmente douradas eram as girls, só as girls.
Até lá na nossa terra, em Danzig, elas actuavam em digressão naqueles fatos
brilhantes, não exactamente no Teatro Municipal, mas no Casino de Zoppot. Mas
Max Kauer, que com o seu médium Susi tinha algum êxito nas Variedades como
vidente e ilusionista, a ponto de poder passar revista às capitais europeias
nos autocolantes que lhe cobriam as malas de viagem, e que eu mais tarde
tratava por tio Max, por ser amigo do irmão de meu pai, Friedel, desde os
tempos de escola, fazia um sinal cansado com a mão, quando se falava nas «girls
em digressão por cá». «Imitação barata!»
Quando minha mãe ainda estava grávida de mim, parece que ele exclamou
«Vocês não podem deixar de ir visitar Berlim. Há sempre coisas fora do vulgar!»
e imitou com os longos dedos de mágico as Tiller-Girls, ou melhor, as suas
intermináveis pernas, mimando Chaplin ao mesmo tempo. Sabia descrever as
«pernaças» das girls. Afirmava serem «esculturalmente perfeitas». Depois falava da
«exactidão rítmica» e de «momentos culminantes» no Admiralspalast. Também
mencionava, a propósito do programa do espectáculo, alguns nomes impressos a
ouro: «como aquela deliciosa Trude Hesterberg, com a sua pequena turpe, pôs em
música jazz os Salteadores de Schiller e deles fez um bailado
engraçadíssimo.» Ouvíamo-lo falar com entusiasmo das Chocolate Kiddies que
havia visto no Skala ou no Jardim de Inverno. «E em breve há-de vir Josephine
Baker, aquele pedaço de mulher selvagem, em digressão a Berlim. A desocultação
sob a forma de dança, como lá diz o filósofo...»
Minha mãe, que gostava de dar largas às suas recordações, transmitiu-me o
entusiasmo do tio Max: «Aliás dança-se muito bem em Berlim, não fazem mais que
dançar. Não podem deixar de cá vir ver uma revista do Haller com a La Jana a
dançar diante do pano de cana bordado a ouro.» Após o que se punha de novo a
imitar as Tiller-Girls com os seus longos dedos de mágico. E minha mãe, a quem
eu já pesava bastante, há-de ter dito a sorrir: «Talvez mais tarde, quando o
negócio correr melhor.» Mas até Berlim é que nunca conseguiu ir.
Só uma vez, por volta de finais dos anos trinta, quando já não cintilavam
nem uns pozinhos dourados dos anos vinte, é que deixou a loja de artigos
coloniais à guarda de meu pai e foi de viagem às montanhas, até Salzkammergut,
no âmbito do programa «Vigor através da Alegria». Não faltavam por lá calças de
cabedal. Até dançaram sapateado à tirolesa."
Günter Grass, (1927-2015) , in O Meu
Século,
2.ª edição, tradução de Maria Antonieta Mendonça, Editorial Notícias, Junho de
2001, pp. 76-77
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