No dia da cor verde
Le sel de la terre est le plaisir qu’on
éprouve à faire plaisir à quelqu’un.
Henry de Montherlant, in
“ Va jouer avec cette poussiére”, Carnets 1958-1964
A palavra foi feita para dizer.
Graciliano Ramos
Abençoados os corações flexíveis, pois
nunca serão partidos.
Albert Camus
O
medo assaltara-o. Temera aquele dia. O mundo mudara muito. Nada era mais o que
fora. As imagens de uma outra memória não correspondiam àquilo que via, à medida que avançavam os dias e de
nova cor se vestia. A surpresa era tão forte que se hauria em sufoco. O ar
pesava, obstruindo-lhe os pulmões. Que dor.
O
verde fora o campo que lavrara, a seara
que vira crescer , o fruto que
apanhara, a massa que levedara, o pão que repartira, a fome que matara, o refúgio que abrigara, o chão que habitara, o tecto que partilhara, o
jardim que plantara. O verde era o desejo de ser feliz numa Primavera sempre renovada.
A Esperança que alimenta os corações do homem. A dimensão que faz do Presente
um Futuro sido. O sonho que se materializa nos lábios de cada criança.
Que
acontecera? Onde estavam as cidades verdes? Prometeram-lhe sobrevivência. Um
mundo vestido de verde. Um mundo à procura de si mesmo. Um mundo com amanhã, de
braços abertos à tolerância, à inclusão , à generosidade, à compreensão, à
partilha , à dádiva, à
multiculturalidade, à cidadania. Um mundo sem arame farpado, sem muros, sem
fronteiras para quem perde tecto , para quem é perseguido, para quem foge das
armas, da fome, do opróbrio, da tirania que persiste e renasce no fel dos déspotas. Um mundo aberto ao Homem.
Onde
estava esse mundo? A memória não se apagara. Tinha-a viva. Intacta. Indelével.
«Pois
não era só memória. Memória era só a metade disso, não era bastante.” Que
fazer, então?
Aplanaira
tantas arestas antes de partir. O equilíbrio era já uma certeza em desenvolvimento. Com intensidade,
chegavam-lhe, de novo, as palavras de um ilustre escritor, de um filósofo do
tempo da reconstrução. Ambos se tinham envolvido na arte da palavra. Na
recuperação de um mundo que fora violado nas suas mais recônditas entranhas.
Nesse tempo, muitas palavras tinham desaparecido. Algumas esfumaram-se nos
escombros que se estendiam por toda a parte. Outras jaziam doentes, numa
enfermidade endémica, que resistia aos primeiros cuidados.
Ele
afinava as palavras com uma arte ímpar. Nunca lhe aprendera o método. Era um
afinador singularmente brilhante. Com
ele partira uma voz que dava às palavras a música que só o verde conhece.
Fora
uma perda irremediável quando morreu três
anos após ter proferido as palavras que, tão nitidamente saudosas e vivas, lhe acorriam neste agora. Palavras plenas de sentido, redondas na intemporalidade
e na sempre justa sabedoria:
Tem-se dito que as grandes
ideias vêm ao mundo sobre patas de pomba. Talvez então, se apurássemos o
ouvido, ouvíssemos, no meio da balbúrdia dos impérios e das nações, como um
fraco ruído de asas, a doce agitação da
vida e da esperança.
A
comoção chegava-lhe, sem que pudesse controlá-la. Interrompe .Que tempo de dádiva
e de abnegação vivera com este insigne homem. Ficara marcado. O coração
inquietara-se, mas retoma o pensamento
para que a grandeza e a eloquência das
palavras possa prosseguir e revelar a
grande verdade:
Dirão uns que esta esperança
é trazida por um povo , outros por um homem. Eu creio que é, pelo contrário,
suscitada, reanimada, sustentada por milhões de solitários cujas acções e
obras, em todos os dias, negam as
fronteiras e as mais grosseiras aparências
da história, para fazer resplandecer fugitivamente a verdade sempre
ameaçada que cada um, por sobre os seus sofrimentos e alegrias, constrói por
todos.1
E
era essa verdade que tinha de ser reconstruída. Não em novos campos de arame farpado, numa Europa devassada pelo vento do visionismo egoísta . Não, numa
Europa que se muralha , temendo uns cavalos de Troia que não virão. Mas pelo mundo
, onde sucumbe a paz, onde o vitupério
dizima e rouba a esperança de uma sobrevivência entre pares que se
digladiam. Pelo mundo , onde o crepúsculo
acontece não pela violência das armas, mas pelos fumos tóxicos das fábricas
assassinas, pelo pesticidas enganadores que
contaminam os solos, produzidos por multinacionais fraudulentas, pelos abates
indiscriminados das florestas, pela constante
agressão dos poluentes ao ambiente, pela inclusão cega dos transgénicos na cadeia
alimentar, pela infame redução da biodiversidade, pela capitosa ambição de um
mundo reduzido a saldo bancário.
A
Esperança falecia neste mundo. Que verde tão destemperado a cobria. Era uma
morte anunciada. Sem verde perdia-se a terra
e com ela ia o sonho que transforma o mundo.
Como
socorrer. Era urgente descobrir o caminho que liga a terra ao sonho. Sabia que nele estaria a esperança.
Assim
se interrogava. Assim se castigava, quando aos ouvidos lhe chegou, ténue e
abafado, o som de um marulhar distante.
Seria o Mar. Seriam as ondas vestidas de um verdágua marinho a expelir, de novo, a música do tempo primeiro, do arranque iniciático. Como fora possível esquecer a beleza dessas
águas. A pureza inicial.
Correu
até ao areal. Arfando, a Esperança seguiu-o num passo trôpego e arrastado. Ali
estava o mar colorido de um verdágua translúcido e fulgente.
Ao
ver a Esperança depauperada, murcha, encardida, desvitalizada, as ondas enrolaram-na com extrema perícia e, em gestos
requebrados, apanharam toda a família
daquela sedutora palavra.
E
aconteceu. O tempo parou . Um espectáculo de intensa magia encheu aquele
beira-mar. As ondas e as palavras , entre
espuma e gemidos, dançaram ao som
compassado de um mar quente de verão, num movimento que jamais alguma ninfa se
permitiu inspirar.
Quando
a música se extinguiu, o mar repôs na
areia doirada uma Esperança revestida do mais límpido verde marinho. Trazia uma
longa e luminosa cauda de algas
verde-esperança, suportada por todas as outras palavras que dão ao mundo a promessa de um futuro.
A
verdade estava reposta. E quem a quisesse descobrir , bastaria apurar os
sentidos e abrir o coração para sentir a doce agitação da vida e a promissora pulsão da Esperança.
Maria José Vieira de Sousa, in " O Afinador de Palavras ", 2016
1-Albert
Camus na Conferência “O artista e o seu tempo”, 14 de Dezembro de 1957, Upsala
gostei muito
ResponderEliminarJá li e comentei tua postagem NO DIA DA COR AZUL, e pensei que aquele era o dia mais belo para o sonho se cumprir, quando o afinador de palavras, devagarinho, foi revelando o que de mais formoso se aninha no coração do homem: a Liberdade.
ResponderEliminarMas agora surge o VERDE -- esse verde que te quero verde, esse verde andaluz que paira sempre em minha lírica memória -- e ele vem epigrafado com as palavras do Cristo, perguntando o que seria do mundo do amanhã sem o sal da terra. Falando dos corações flexíveis que sabem dar a outra face e, depois, de um mundo onde os braços se abrem à tolerância.
Que palavra tão bela a Esperança e eu me lembrei de Viktor Frankl, “Em busca de sentido”, procurando, em Auschwitz, afinar as palavras para dar àqueles que sabiam que iriam morrer, uma razão para viver.
Teu VERDE traz coisas extremamente belas e poéticas “descobrindo o caminho que liga a terra ao sonho”, e nele a Esperança.
E ao final, a Esperança chegando ao mar, vestindo-se de algas e de promessas.
Essa segunda cor sugere tantas interpretações e nelas a Esperança de nos reveles todo o arco-íris.
Parabéns. Também este teu texto, poético, mágico e fascinante, foi escrito com uma mão de fada. Somos tu e eu e tantos outros, como o nosso fraterno amigo Frederico, os afinadores das palavras numa terra desolada, sabendo que temos de garimpar a linguagem no seio desse impasse, em busca daquela pedra filosofal, aquela cantada por Gideão, no seu itinerário de encanto, onde o sonho comanda a vida.
Manoel de Andrade
Só um poeta sabe dar às palavras o fascínio que as tornam únicas. Seja bem vindo, Manoel . É um grato prazer tê-lo aqui, neste espaço.
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