Galera / 2 de Maio / (1992)
“ Abro a janela e respiro.
O mar, sempre o mar onde a Ilha se
perde e se alcança. Por onde a Ilha se alarga até ser maior que o nosso tédio.
Tudo tão íntimo, tão íntimo. Tão
indefinidamente insular.
Esta manhã, por exemplo, com o mar
todo cinzento, à excepção daquela mancha de luz sobre as águas. Lembro de ter
pensado: mas é preciso que toda a gente saiba, venha ver como é estranha a luz assim flutuante e misteriosa a sair do
mar. Tão estranha, quase sobrenatural –talvez o espírito de Deus a pairar sobre as águas.
Entretanto é muito manhã. E sábado .
Os homens dormem ou, se não dormem, entretêm-se
com outras coisas miúdas e sérias. Nem toda a gente abre, de manhã, a
janela e se debruça a olhar o mar –
embora todos os ilhéus o tragam dentro
de si como uma coisa religiosa, um canto gregoriano solene e ressonante.
Gota a gota, o tempo, na exactidão do
destruir. Metodicamente, implacavelmente no destruir , salvo no que toca ao mar
– tão atingido como Deus. A janela aberta no sossego desta manhã de Maio que já
não é dos maios, porque hoje é dia
dois. Eu na posse do silêncio primordial
que vem das águas. Da luz sobre as águas. Da imensidade.
Do meu posto, olho a paz das enseadas onde os navios largam âncora e
ficam imóveis. Uma voz canta. É voz de
homem, rústica, um pouco roufenha que galga as sebes e os muros , alastra pelos
campos. Não entendo o que diz nas palavras. Só ouço a toada trémula e áspera
como um uivo no vento. Não pode ser
senão do homem do mar, aquela voz: sobe da garganta, longínqua, cheia das
distâncias dos litorais.
Estou como quem apenas deseja olhar e
escutar. Um abandono ao ar fino da manhã. E aquela voz roufenha, quase
selvagem, na toada primitiva que o mar espalha na Ilha desde o tempo em que não
havia homens sobre a Terra.
Por um instante tive uma visão desse
tempo primitivo – uma coisa desfocada , confusa, emaranhada de silvedos e urzes
da serra. Uma coisa ainda sem nome e sem lugar nos mapas. “ Fernando Aires , in Era uma vez o Tempo, Diário , Editora Opera
Omnia, p. 458
Sobre
o Autor :
“Fernando Aires nasceu em Ponta Delgada
, São Miguel, Açores a 18 de Fevereiro de de 1928 e faleceu na mesma cidade em
9 de Novembro de 2010. Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas , em
1958, na Universidade de Coimbra. Estagiou para a docência na cidade do Porto. Regressado
aos Açores, S. Miguel, exerceu a actividade
docente no Liceu Antero de Quental , na escola do Magistério Primário e posteriormente,
durante duas décadas, até à jubilação (1995) , na Universidade dos Açores.
Escritor, ensaísta , cronista em muitos jornais e revistas iniciou muito
cedo o seu percurso literário. Ainda estudante
, fez parte de uma tertúlia literária com outros nomes sonoros das Letras com quem
viria a constituir ,em 1946, o Círculo Literário Antero de Quental que pretendia
agitar e acabar com o conservantismo que estagnava as letras açorianas.
Autor de uma obra variada, a sua
escrita viria a desenvolver-se num género literário onde predomina o
memorialismo, que se manifesta nesta vertente diarística, da qual resulta este
Diário em cinco volume, reeditado em 2015, num único e grosso volume.
No Prefácio a esta obra, Eugénio Lisboa escreve : O diário é rico de meditações, de
percepções, de visões , de assombros que surgem no decorrer dos dias e que o escritor vai registando com pathos variado.(…)
Mas
porquê, afinal, escrever? A resposta dada pelo autor do diário é simples,
cândida e pungente: porque é « um
homem que escreve por puro prazer, porque não sabe de mais nada que substitua esse prazer. Eis tudo». O
prazer da escrita como antídoto para o
desespero de viver e de verificar que a vida é efémera e talvez sem sentido. (…)
«Ponho –me a escutar os
acontecimentos do passado , a reflectir sobre o que ficou escondido por detrás
das aparências.” É um convite
irresistível: façamos como o autor deste diário singularmente belo – ouçamos a
música subtil das palavras, escutemos os acontecimentos ( ou nem tanto) deste presente
que hoje é passado, reflictamos sobre o canto profundo que se esconde em
passagens , às vezes, na aparência, tão anódinas…”
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