terça-feira, 17 de maio de 2016

O sonho que transforma o mundo.

 


No dia da cor verde

Le sel de la terre est le plaisir qu’on éprouve à faire  plaisir à quelqu’un.
Henry de Montherlant, in “ Va jouer avec cette poussiére”, Carnets 1958-1964

A palavra foi feita para dizer.
Graciliano Ramos

Abençoados os corações flexíveis, pois nunca serão partidos.
Albert Camus

O medo assaltara-o. Temera aquele dia. O mundo mudara muito. Nada era mais o que fora. As imagens de uma outra  memória  não correspondiam àquilo que via,  à medida que avançavam os dias   e de nova cor se vestia. A surpresa era tão forte que se hauria em sufoco. O ar pesava, obstruindo-lhe os pulmões. Que dor.
O verde fora o campo que lavrara, a seara  que vira crescer ,  o fruto que apanhara, a massa que levedara, o pão que repartira,  a fome que matara, o refúgio que  abrigara,  o chão que habitara, o tecto que partilhara, o jardim que plantara. O verde era o desejo de ser feliz numa Primavera sempre renovada. A Esperança que alimenta os corações do homem. A dimensão que faz do Presente um Futuro sido. O sonho que se materializa nos lábios de cada criança.
Que acontecera? Onde estavam as cidades verdes? Prometeram-lhe sobrevivência. Um mundo vestido de verde. Um mundo à procura de si mesmo. Um mundo com amanhã, de braços abertos à tolerância, à inclusão , à generosidade, à compreensão, à partilha , à  dádiva, à multiculturalidade, à cidadania. Um mundo sem arame farpado, sem muros, sem fronteiras para quem perde tecto , para quem é perseguido, para quem foge das armas, da fome, do opróbrio, da tirania que persiste e renasce no fel dos  déspotas. Um mundo aberto ao Homem.
Onde estava esse mundo? A memória não se apagara. Tinha-a viva. Intacta. Indelével.
«Pois não era só memória. Memória era só a metade disso, não era bastante.” Que fazer, então?
Aplanaira tantas arestas antes de partir. O equilíbrio era já uma certeza  em desenvolvimento. Com intensidade, chegavam-lhe, de novo, as palavras de um ilustre escritor, de um filósofo do tempo da reconstrução. Ambos se tinham envolvido na arte da palavra. Na recuperação de um mundo que fora violado nas suas mais recônditas entranhas. Nesse tempo, muitas palavras tinham desaparecido. Algumas esfumaram-se nos escombros que se estendiam por toda a parte. Outras jaziam doentes, numa enfermidade endémica, que resistia aos primeiros cuidados.
Ele afinava as palavras com uma arte ímpar. Nunca lhe aprendera o método. Era um afinador singularmente  brilhante. Com ele partira uma voz que dava às palavras a música que só o verde conhece.
Fora uma perda irremediável quando morreu  três anos após ter proferido as palavras que, tão nitidamente  saudosas e vivas,  lhe acorriam neste  agora. Palavras  plenas de sentido, redondas na intemporalidade e na sempre justa sabedoria:
Tem-se dito que as grandes ideias vêm ao mundo sobre patas de pomba. Talvez então, se apurássemos o ouvido, ouvíssemos, no meio da balbúrdia dos impérios e das nações, como um fraco ruído de asas, a doce  agitação da vida e da esperança.
A comoção chegava-lhe, sem que pudesse controlá-la. Interrompe .Que tempo de dádiva e de abnegação vivera com este insigne homem. Ficara marcado. O coração inquietara-se, mas   retoma o pensamento para que a  grandeza e a eloquência das palavras possa prosseguir   e revelar a grande verdade: 
Dirão uns que esta esperança é trazida por um povo , outros por um homem. Eu creio que é, pelo contrário, suscitada, reanimada, sustentada por milhões de solitários cujas acções e obras,  em todos os dias, negam as fronteiras e as mais grosseiras aparências  da história, para fazer resplandecer fugitivamente a verdade sempre ameaçada que cada um, por sobre os seus sofrimentos e alegrias, constrói por todos.1
E era essa verdade que tinha de ser reconstruída. Não em novos campos de arame farpado, numa Europa devassada pelo vento do visionismo egoísta . Não, numa Europa que se  muralha  , temendo uns  cavalos de Troia que não virão. Mas pelo mundo , onde  sucumbe a paz, onde o vitupério dizima e rouba a esperança de uma sobrevivência entre pares que se digladiam.  Pelo mundo , onde o crepúsculo acontece não pela violência das armas, mas pelos fumos tóxicos das fábricas assassinas, pelo pesticidas  enganadores que contaminam os solos, produzidos por multinacionais fraudulentas, pelos abates indiscriminados  das florestas, pela constante agressão dos poluentes ao ambiente, pela inclusão cega dos transgénicos na cadeia alimentar, pela infame redução da biodiversidade, pela capitosa ambição de um mundo reduzido a saldo bancário.
A Esperança falecia neste mundo. Que verde tão destemperado a cobria. Era uma morte anunciada. Sem verde perdia-se a terra  e com ela ia o sonho que transforma o mundo.
Como socorrer. Era urgente descobrir o caminho que liga a terra ao sonho.  Sabia que nele estaria a esperança.
Assim se interrogava. Assim se castigava, quando aos ouvidos lhe chegou, ténue e abafado,  o som de um marulhar distante. Seria o Mar. Seriam as ondas vestidas de um verdágua marinho a  expelir, de novo,  a música do tempo primeiro, do arranque iniciático.  Como fora possível esquecer a beleza dessas águas. A pureza inicial.
Correu até ao areal. Arfando, a Esperança seguiu-o num passo trôpego e arrastado. Ali estava o mar colorido de um verdágua translúcido e fulgente.
Ao ver a Esperança depauperada, murcha, encardida, desvitalizada, as ondas  enrolaram-na com extrema perícia e, em gestos requebrados, apanharam  toda a família daquela sedutora palavra.
E aconteceu. O tempo parou . Um espectáculo de intensa magia encheu aquele beira-mar. As ondas e as palavras ,  entre espuma e gemidos,  dançaram ao som compassado de um mar quente de verão, num movimento que jamais alguma ninfa se permitiu inspirar.
Quando a música se extinguiu, o mar  repôs na areia doirada uma Esperança revestida do mais límpido verde marinho. Trazia uma longa  e luminosa cauda de algas verde-esperança, suportada por todas as outras palavras que dão ao mundo  a promessa de um futuro.
A verdade estava reposta. E quem a quisesse descobrir , bastaria apurar os sentidos e abrir o coração para sentir a   doce  agitação da vida e   a promissora pulsão  da Esperança. 
Maria José Vieira de Sousa, in " O Afinador de Palavras ", 2016

1-Albert Camus na Conferência “O artista e o seu tempo”, 14 de Dezembro de 1957, Upsala

3 comentários:

  1. Já li e comentei tua postagem NO DIA DA COR AZUL, e pensei que aquele era o dia mais belo para o sonho se cumprir, quando o afinador de palavras, devagarinho, foi revelando o que de mais formoso se aninha no coração do homem: a Liberdade.

    Mas agora surge o VERDE -- esse verde que te quero verde, esse verde andaluz que paira sempre em minha lírica memória -- e ele vem epigrafado com as palavras do Cristo, perguntando o que seria do mundo do amanhã sem o sal da terra. Falando dos corações flexíveis que sabem dar a outra face e, depois, de um mundo onde os braços se abrem à tolerância.

    Que palavra tão bela a Esperança e eu me lembrei de Viktor Frankl, “Em busca de sentido”, procurando, em Auschwitz, afinar as palavras para dar àqueles que sabiam que iriam morrer, uma razão para viver.

    Teu VERDE traz coisas extremamente belas e poéticas “descobrindo o caminho que liga a terra ao sonho”, e nele a Esperança.
    E ao final, a Esperança chegando ao mar, vestindo-se de algas e de promessas.
    Essa segunda cor sugere tantas interpretações e nelas a Esperança de nos reveles todo o arco-íris.

    Parabéns. Também este teu texto, poético, mágico e fascinante, foi escrito com uma mão de fada. Somos tu e eu e tantos outros, como o nosso fraterno amigo Frederico, os afinadores das palavras numa terra desolada, sabendo que temos de garimpar a linguagem no seio desse impasse, em busca daquela pedra filosofal, aquela cantada por Gideão, no seu itinerário de encanto, onde o sonho comanda a vida.

    Manoel de Andrade

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    1. Só um poeta sabe dar às palavras o fascínio que as tornam únicas. Seja bem vindo, Manoel . É um grato prazer tê-lo aqui, neste espaço.

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