"Na década de 50, e após a conclusão da licenciatura em Filologia Românica com a apresentação da tese “Três Coordenadas na Poesia de Sá de Miranda”, o poeta David Mourão-Ferreira casa-se com Maria Eulália Barbosa de Carvalho e, por intermédio do seu grande amigo e cunhado Rui Valentim de Carvalho, conhece Amália Rodrigues. Este encontro viria a alterar de modo profundo a sua relação com o fado, facto esse também decisivo na sua escrita: “Mas que surdo e raivoso burburinho, nas hostes literatas e policastas, quando comecei a escrever versos para Amália cantar!” (cfr. David Mourão-Ferreira, “Um livro de e sobre Amália”, in “Ócios do Ofício”, 1989, p. 35). Neste contexto, surgem as primeiras letras de fados para a interpretação de Amália; “Primavera” (1953), “Libertação” (1955) e as versões portuguesas “Sempre e Sempre Amor” (1953), “Neblina” (1954) e “Quando a Noite Vem” (1954). (cfr. Joana Morais Varela, “David à Guitarra e à Viola” in “Primavera”, 2007, p. 71)
Será determinante o contributo do compositor Alain Oulman para que a poesia erudita e contemporânea figure no repertório de Amália Rodrigues. A poesia de David Mourão-Ferreira, Pedro Homem de Mello, Luís de Macedo, José Régio, Alexandre O´Neill, Manuel Alegre e até de Luís de Camões, musicada por Alain Oulman, figurará em álbuns da fadista como “Busto” (1962), “Fado Português” (1965), e “Com que Voz” (1970), alterando em absoluto o rumo traçado pela tradição fadista."Museu do Fado
PRIMAVERA
Todo o amor que nos prendera,
Como se fora de cera,
Se quebrava e desfazia.
Ai funesta Primavera,
Quem me dera, quem nos dera,
Ter morrido nesse dia.
E condenaram-me a tanto,
Viver comigo meu pranto,
Viver, viver e sem ti.
Vivendo sem no entanto,
Eu me esquecer desse encanto,
Que nesse dia perdi.
Pão duro da solidão,
É somente o que nos dão,
O que nos dão a comer.
Que importa que o coração,
Diga que sim ou que não,
Se continua a viver.
Todo o amor que nos prendera,
Se quebrara e desfizera,
Em pavor se convertia.
Ninguém fale em Primavera,
Quem me dera, quem nos dera,
Ter morrido nesse dia.
David Mourão-Ferreira (1953)
O Fado "Libertação"(1955), na voz de Amália Rodrigues , com poema de David Mourão-Ferreira. A Música é de Santos Moreira.
Libertação
Fui à praia, e vi nos limos
a nossa vida enredada:
ó meu amor, se fugimos,
ninguém saberá de nada.
Na esquina de cada rua,
uma sombra nos espreita,
e nos olhares se insinua,
de repente uma suspeita.
Fui ao campo, e vi os ramos
decepados e torcidos:
ó meu amor, se ficamos,
pobres dos nossos sentidos.
Hão-de transformar o mar
deste amor numa lagoa:
e de lodo hão-de a cercar,
porque o mundo não perdoa.
Em tudo vejo fronteiras,
fronteiras ao nosso amor.
Longe daqui, onde queiras,
a vida será maior.
Nem as esp'ranças do céu
me conseguem demover
Este amor é teu e meu:
só na terra o queremos ter.
David Mourão-Ferreira (1955)
Amália Rodrigues, no Álbum Com Que Voz (1970) totalmente musicado por Alain Oulman .Título e autor do poema:
Naufrágio (Cecília Meireles)
Maria Lisboa (David Mourão-Ferreira)
Trova Do Vento Que Passa (Manuel Alegre)
Com Que Voz (Luís de Camões)
Cravos De Papel (António de Sousa)
As Mãos Que Trago (Cecília Meireles)
Gaivota (Alexandre O'Neill)
Havemos De Ir A Viana (Pedro Homem de Mello)
Cuidei Que Tinha Morrido (Pedro Homem de Mello)
Formiga Bossa Nova (Alexandre O'Neill)
Meu Limão De Amargura (José Carlos Ary dos Santos)
Madrugada De Alfama (David Mourão-Ferreira)
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