A ética de Kant
Por James
Rachels
"Como muitos
outros filósofos, Kant pensava que a moralidade pode resumir-se num princípio
fundamental, a partir do qual se derivam todos os nossos deveres e obrigações.
Chamou a este princípio “imperativo categórico”. Na Fundamentação da
Metafísica dos Costumes (1785) exprimiu-o desta forma:
Age apenas segundo aquela máxima que
possas ao mesmo tempo desejar que se torne lei universal.
No entanto,
Kant deu igualmente outra formulação do imperativo categórico. Mais adiante, na
mesma obra, afirmou que se pode considerar que o princípio moral essencial
afirma o seguinte:
Age de tal forma que trates a
humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca
apenas como um meio.
Os estudiosos
têm-se perguntado desde então por que razão pensava Kant que estas duas regras
são equivalentes. Parecem exprimir concepções morais diferentes. Serão, como
Kant pensava aparentemente, duas versões da mesma ideia básica, ou são
simplesmente ideias diferentes? Não nos vamos deter nesta questão. Vamos, em
vez disso, concentrar-nos na crença de Kant de que a moralidade exige que
tratemos as pessoas “sempre como um fim e nunca apenas como um meio”. O que
significa exactamente isto, e que razão há para pensar que é verdade?
Quando Kant
afirmou que o valor dos seres humanos “está acima de qualquer preço” não tinha
em mente apenas um efeito retórico, mas sim um juízo objectivo sobre o lugar
dos seres humanos na ordem das coisas. Há dois factos importantes sobre as
pessoas que apoiam, do seu ponto de vista, este juízo.
Primeiro, uma
vez que as pessoas têm desejos e objectivos, as outras coisas têm valor para
elas em relação aos seus projectos. As meras “coisas” (e isto inclui os animais
que não são humanos, considerados por Kant incapazes de desejos e objectivos
conscientes) têm valor apenas como meios para fins, sendo os fins humanos que
lhes dão valor. Assim, se quisermos tornar-nos melhores jogadores de
xadrez, um manual de xadrez terá valor para nós; mas para lá de tais objectivos
o livro não tem valor. Ou, se quisermos viajar, um carro terá valor para nós;
mas além de tal desejo o carro não tem valor.
Segundo, e
ainda mais importante, os seres humanos têm “um valor intrínseco, isto é,
dignidade”, porque são agentes racionais, ou seja, agentes livres com
capacidade para tomar as suas próprias decisões, estabelecer os seus próprios
objectivos e guiar a sua conduta pela razão. Uma vez que a lei moral é a lei da
razão, os seres racionais são a encarnação da lei moral em si. A única forma de
a bondade moral poder existir é as criaturas racionais apreenderem o que devem
fazer e, agindo a partir de um sentido de dever, fazê-lo. Isto, pensava Kant, é
a única coisa com “valor moral”. Assim, se não existissem seres racionais a
dimensão moral do mundo simplesmente desapareceria.
Não faz
sentido, portanto, encarar os seres racionais apenas como um tipo de coisa
valiosa entre outras. Eles são os seres para quem as meras “coisa” têm valor, e
são os seres cujas acções conscientes têm valor moral. Kant conclui, pois, que
o seu valor tem de ser absoluto, e não comparável com o valor de qualquer outra
coisa.
Se o seu
valor está “acima de qualquer preço”, segue-se que os seres racionais têm de
ser tratados “sempre como um fim e nunca apenas como um meio”. Isto significa,
a um nível muito superficial, que temos o dever estrito de beneficência
relativamente às outras pessoas: temos de lutar para promover o seu bem-estar;
temos de respeitar os seus direitos, evitar fazer-lhes mal, e, em geral,
“empenhar-nos, tanto quanto possível, em promover a realização dos fins dos
outros”.
Mas a ideia
de Kant tem também uma implicação um tanto ou quanto mais profunda. Os seres de
que estamos a falar são racionais, e “tratá-los como fins em si” significa respeitar
a sua racionalidade. Assim, nunca podemos manipular as pessoas, ou usá-las,
para alcançar os nossos objectivos, por melhores que esses objectivos possam
ser. Kant dá o seguinte exemplo, semelhante a outro que utiliza para ilustrar a
primeira versão do seu imperativo categórico: suponha que precisa de dinheiro e
quer um empréstimo, mas sabe que não será capaz de devolvê-lo. Em desespero,
pondera fazer uma falsa promessa de pagamento de maneira a levar um amigo a
emprestar-lhe o dinheiro. Poderá fazer isso? Talvez precise do dinheiro para um
propósito meritório — tão bom, na verdade, que poderia convencer-se a si mesmo
de que a mentira seria justificada. No entanto, se mentisse ao seu amigo,
estaria apenas a manipulá-lo e a usá-lo “como um meio”.
Por outro
lado, como seria tratar o seu amigo “como um fim”? Suponha que dizia a verdade,
que precisava do dinheiro para um certo objectivo mas não seria capaz de
devolvê-lo. O seu amigo poderia, então, tomar uma decisão sobre o empréstimo.
Poderia exercer os seus próprios poderes racionais, consultar os seus próprios
valores e desejos, e fazer uma escolha livre e autónoma. Se decidisse de facto
emprestar o dinheiro para o objectivo declarado, estaria a escolher fazer
seu esse objectivo. Dessa forma, o leitor não estaria a usá-lo como um meio
para alcançar o seu objectivo, pois seria agora igualmente o objectivo dele. É
isto que Kant queria dizer quando afirmou que “os seres racionais […] têm
sempre de ser estimados simultaneamente como fins, isto é, somente como seres
que têm de poder conter em si a finalidade da acção”.
A concepção
kantiana da dignidade humana não é fácil de entender; é provavelmente a noção
mais difícil discutida neste livro. Precisamos de encontrar uma forma de tornar
a ideia mais clara. (...) Kant pensava que se tomarmos a sério a ideia da dignidade humana
seremos capazes de entender a prática da punição de crimes de uma forma nova e
reveladora. "James
Rachels, in “ Elementos de Filosofia Moral” Gradiva, Lisboa 2004
Sem comentários:
Enviar um comentário