Um homem de letras
Por Bernardo Carvalho
"Não abro os olhos há
quatro anos. Não é que eu seja cego; simplesmente não quero ver. Sou um homem
de letras. Ou fui. Fechei os olhos no dia em que compreendi que não via como os
outros, e decidi nunca mais abri-los. O problema não era você achar lamentável
o que eu fazia; era eu achar incrível o que você achava lamentável. O problema
não era a falta de sentido do que eu fazia. O problema era eu continuar vendo
sentido onde você e os outros não viam sentido nenhum. A sua opinião não foi
capaz de mudar a minha; só me deixou pasmo. Eu estava ficando louco por não ver
o que você via – ou por ver o que você não via. Tanto faz. Tudo depende do
ponto de vista. E decidi por bem fechar os olhos. Antes cego do que louco.
Ninguém é louco pra forçar um cego a ver. Mas ainda estou pra ver quem nunca
desejou trazer um louco de volta à razão.
Quando digo homem de
letras, talvez não me faça compreender. Letras e números. Não quero que me
interpretem mal. Não vim pra criar mal-entendidos. Explico: componho letras e
números. Tenho uma pequena loja. Sou letrista – ou letreirista, como você
sempre fez questão de lembrar em prol da minha modéstia. A sua opinião pode não
ter tido consequências na minha própria opinião, mas arruinou o meu negócio.
Porque eu era um homem de visão. E estava decidido a criar uma linguagem que
qualquer homem compreendesse pela simples disposição e pela forma das letras.
Me baseei nos egípcios. Os egípcios são a origem de tudo.
Desde que vi
hieróglifos num manual escolar, entendi o que queriam dizer. Quer maior
silêncio? Ninguém precisou me explicar. Entendi pra mim, é claro. Mas bastava
abrir a boca e contar aos outros, e o entendimento desaparecia, e o que fora
genial passava a ser ridículo. Você é a prova viva. Foi o primeiro a me pedir
explicações quando resolvi criar a minha linguagem. Quando eu disse que era uma
linguagem. Você apareceu no dia em que comecei a escrever, pra me pedir
explicações sobre o que não se explica.
Eu não podia evitar
a influência deles. Dos hieróglifos, é claro. Muita gente demorou a entender
que as letras aparentemente independentes, avulsas, soltas no espaço, formavam
na verdade frases, ensaios, poemas e prosas. E que a disposição dos caracteres
e a diferença de formas e de tamanhos faziam todo o sentido. Não me deram
crédito. A começar por você. Mesmo assim eu escrevi. Prosa, poesia e ensaio. Na
minha língua que você não podia ler. Uma língua ao mesmo tempo simples e
indecifrável –sem necessidade de nenhuma pedra de Roseta –, cujo
sentido estivesse bem aí, diante dos olhos. E tampouco estivesse. Uma língua
pra escrever o que não se entende.
Mas assim como pra
tudo deve haver uma explicação (era o que você vivia repetindo), também deveria
haver uma explicação para uma língua que só pode ser explicada por si mesma.
Logo se vêem os constrangimentos que ela cria. Mal comecei a escrever e já foi
preciso explicar. Também é preciso dizer que, apesar de tudo, na falta de uma
explicação, há sempre alguém pronto pra interpretar. Um sabichão ou outro. E
não foi por acaso que fechei os olhos.
Escrever provoca a
voz dos outros quando tudo o que você procura é o silêncio. Um dia um homem
veio me falar dos textos que eu compunha. Havia compreendido os meus textos.
Para o bem ou para o mal, lia o que eu mesmo não podia ler pra você nem pra
ninguém. Foi só o primeiro. Porque depois veio outro e mais outro e mais outro,
cada um com a sua interpretação, uma diferente da outra. Todos tinham
compreendido os meus textos e, muito excitados, queriam compartilhar a sua
interpretação comigo. Invariavelmente, já sabiam o que liam antes de ler. Em
alguns desses homens, as letras despertaram uma ira que eu tampouco saberia
explicar. E eu fugi. Que mais podia fazer? Fechei os olhos. Para não ter que
vê-los nem conversar com eles – nem com ninguém – sobre o que não se traduz
(afinal, é uma língua para todos). No início, ainda me insultaram e me
ameaçaram, queriam que eu abrisse os olhos e a boca. Mas logo me esqueceram.
Ninguém xinga por muito tempo um homem de olhos fechados.
Pelo menos, ganhei a
solidão. E você sumiu da minha frente. Desde então, quando abro a porta da
oficina, sempre de olhos fechados, já não corro o risco de deparar com alguém
pra me interpelar sobre o sentido do que escrevo. Já não se atrevem a decifrar
nenhum código. Nem a me insultar.
Resignaram-se às
letras aleatórias. Já não sou notado. Como se também tivessem deixado de me ver
desde que fechei os olhos.
Se você não tivesse
desaparecido no dia em que fechei os olhos, na certa diria, em prol da minha
modéstia, que está tudo na minha cabeça, que ninguém nunca esteve nem aí pra
mim nem pra minha língua, que é tudo mistificação.Você me perguntaria, com o
seu despeito habitual, por que é que não escrevi este texto na minha própria
língua. E eu diria que esta é uma despedida. É a última vez que me explico.
Você faria questão de lembrar que não é língua; é grafia. E eu teria de
concordar. Uma grafia. Que seja. Tudo em prol da minha modéstia. Sou (fui) um
homem de letras. E por tudo o que vi antes de fechar os olhos (e que o espanto
da sua incompreensão só confirmou), inventei essa grafia, se é assim que você
prefere chamá-la, ao mesmo tempo simples e intraduzível, e fechei os olhos, pra
nunca mais passar pelo constrangimento de ter que explicar a você (nem a
ninguém) o seu próprio espanto." Bernardo Carvalho, in rev. Serrote
Bernardo Carvalho é um dos mais
destacados autores brasileiros contemporâneos, escritor e jornalista. É autor de mais de 20 livros, entre
eles O filho da mãe, O sol se põe em São Paulo, Nove noites, Mongólia e Aberração,
todos editados pela Companhia das Letras. As suas obras estão traduzidas em mais
de dez idiomas. É também tradutor e autor da peça BR-3, encenada às
margens do rio Tietê.
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