Introdução
“Quando regresso do mar venho sempre estonteado e cheio de luz que me trespassa. Tomo então apontamentos rápidos – seis linhas – um tipo – uma paisagem. Foi assim que coligi este livro, juntando-lhe algumas páginas de memórias. Meia dúzia de esboços afinal, que, como certos quadrinhos do ar livre, são melhores quando ficam por acabar. Estas linhas de saudade aquecem-me e reanimam-me nos dias de Inverno friorento. Torno a ver o azul, e chega mais alto até mim o imenso eco prolongado... Basta pegar num velho búzio para se perceber distintamente a grande voz do mar. Criou-se com ele e guardou-a para sempre. – Eu também nunca mais a esqueci...” (...)
“Quando regresso do mar venho sempre estonteado e cheio de luz que me trespassa. Tomo então apontamentos rápidos – seis linhas – um tipo – uma paisagem. Foi assim que coligi este livro, juntando-lhe algumas páginas de memórias. Meia dúzia de esboços afinal, que, como certos quadrinhos do ar livre, são melhores quando ficam por acabar. Estas linhas de saudade aquecem-me e reanimam-me nos dias de Inverno friorento. Torno a ver o azul, e chega mais alto até mim o imenso eco prolongado... Basta pegar num velho búzio para se perceber distintamente a grande voz do mar. Criou-se com ele e guardou-a para sempre. – Eu também nunca mais a esqueci...” (...)
"O mar às vezes
parece um véu diáfano, outras pó verde. Às vezes é dum azul transparente,outras cobalto. Ou não tem consistência e é céu, ou é confusão e cólera.
De manhã
desvanece-se, de tarde sonha. E há dias de nevoeiro em que ele é extraordinário,
quando a névoa espessa pouco e pouco se adelgaça, e surge atrás da última cortina
vaporosa, todo verde, dum verde que apetece respirar. Diferentes verdes bóiam na água,
esbranquiçados, transparentes, escuros, quase negros, misturados com restos de onda
que se desfaz e redemoinha até ao longe. E ainda outros azulados, com a cor das
podridões. Tudo isto graduado e dependendo do céu, da hora e das marés. Há momentos em que
me julgo metido dentro duma esmeralda, e, depois, numa jóia esplêndida, dum
azul único que se incendeia. Mas a luz morre, e a luz agonizando exala-se como um
perfume. É uma grande flor que desfalece. O doirado não é simplesmente
doirado, nem o verde simplesmente verde: possuem uma alma delicada e extática.(...)
Sol e azul e depois névoa. Às vezes começa em Agosto, outras em Setembro.Uma barra ao longe anuncia-a, uma barra que cresce em fumarada sobre a
terra, ou que se dispersa correndo para o sul, em labaredas sobre o mar esverdeado.
Há outras névoas no Verão que se descerram lentamente como cortinas, ficando o panorama
límpido como uma aguarela acabada de pintar. Outras têm léguas de extensão e
levam dias a passar. E o mar exala um cheiro mais vivo quando o nevoeiro parece
dissolver-se, para logo voltar mais denso e compacto. Às vezes vê-se entre a neblina um
ponto da costa cheio de luz, um rasgão no mar, uma única pedra iluminada entre o céu
infinito e o mar infinito.
Tenho visto também umas névoas esbranquiçadas que ficam lá para muito
fundo embebendo-se de luz. Névoa, um pouco de sol e brancura, tudo
emborralhado. A onda
vem de longe, irrompe da névoa, e só se vêem os grandes rolos brancos
revolvidos de espuma muito ao perto quando se despedaçam.
Em Sagres assisti a um nevoeiro extraordinário. Aparecem primeiro uns
flocos no céu, e a luz tomou-se logo mais azul, pegando azul à pele, molhando de
azul as mãos estendidas. Depois a névoa, que no Verão dura segundos, doirou e subiu
ao ar, tornando o horizonte mais ilimitado e fantasmagórico...
As névoas anunciam o Inverno. Começam a vir os nevoeiros compactos, que
se metem pelas narinas e cheiram a mar e a fumo. Há-os que têm léguas de
espessura e levam dias a passar, coortes desordenadas de fantasmas enchendo todo o
horizonte. O sino tange. Não se vê palmo diante do nariz. Lá fora os barcos, como
cegos, só se guiam pelo som. 0 mar é um misterioso fantasma que os envolve. Cerração cada
vez mais mole e espessa... Só a voz se ouve, e o lamento parece vir de mais longe e
de mais fundo. Às vezes adelgaça-se um pouco na costa, e grandes rolos de fumaceira
crescem do mar sobre a terra. É o Inverno que vem aí. A voz imensa tem já plangências
de dor – desabar infinito de lágrimas. De sul para o norte as nuvens correm sempre,
coortes sobre coortes que saem das profundas e avançam, deslizam sobre as águas sem ruído,
enchendo o céu de farrapos enormes, de fantasmas criados naquele mar salgado e que se
seguem em tropel num galope monstruoso para uma grande batalha desconhecida. E de
quando em quando o sino chama, chama sempre pelos homens perdidos na névoa
espessa que leva dias a passar." RAUL BRANDÃO, in “Os Pescadores”, Livraria Aillaud e Bertrand, Lisboa,1923
“Os Pescadores “ de Raul Brandão
Sinopse
"Nesta obra, o autor oferece-nos belas telas ricas de cor, de luz, dos
vários elementos colhidos na natureza.
O entardecer nas suas várias cambiantes, conforme o lugar e o tempo, é
descrito em pinceladas fortes com verbos no presente - a ação em decurso e com
o subjetivismo do autor arrastado pelo sonho e transpor para as telas, que
sugere, a tragédia de um poente tempestuoso à beira-mar que é sempre temível
para os pescadores.
Além de belos quadros paisagísticos, também nos oferece sugestivos
retratos - o do faroleiro, a velha da Foz do Douro, a sanjoaneira, a mulher da
Afurada, de Mira "feia mas esbelta (que) tem ar grave e senhoril quase
sempre", a heroica Ti Ana Arneira da Gafanha, a mulher da Murtosa
"baixa e atarracada", a de Ovar "delicada e forte, alta e bem
proporcionada, cheia de predicados domésticos e morais", a poveira "a
bem dizer - um homem", a Rata da Foz. É evidente a simpatia de Raul
Brandão pela sua dolorosa vida difícil, de trabalho, de explorados.” Lilaz
Carriço, in “Literatura Prática II”, pp. 361-362, Porto Editora, 1999
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