há muitos anos, e quem se lembrava
era também memória que passava,
um rosto que entre outros rostos
se perdia"
Manuel António Pina
“A memória aniquila o tempo: conduz à unidade aquilo que parece ter acontecido em separado.” Leo Tolstoi
"Arrumar o passado não me parece
ser equivalente a invocá-lo. Estive em
tantos lugares , ao longo da minha vida, que trazê-lo até mim é quase perder-me
por lugares que já não conheço e que se transfiguram no olhar que lhes lanço.
Ferreira Gullar , quando inquirido por que não escrevia as memórias, respondeu
que lhe era impossível porque perdera a memória desse tempo. Entretanto, já
tinha escrito as Memórias do tempo de exílio que justificava recordar por ter sido uma época marcante da sua vida.
Todos nós, num processo de
rememoração, recuperámos momentos que foram gravados para sempre e que
retornam, por vezes, activados por um
ocasional estímulo. (As madalenas de Proust são o exemplo mais notável.) Nítidos, surgem–nos na limpidez do tempo vivido. Mas esse tempo não é o tempo
real. Nunca se recupera o passado. Quando é invocado não transporta o sujeito real que o viveu. Esse sujeito passa a ser a memória do sujeito
actual. Sujeito que converte em objecto de reconstrução um tempo que viveu e findou.
Recordo ter procurado um local
onde passei algum tempo, na infância. Era uma quinta frondosa com uma casa
apalaçada de grandes dimensões, no Norte do país. Por mais que a procurasse, não a
localizava. Até que, juntamente com os meus pais , rumámos ao encontro da
quinta de infância. Nem sequer houve desvios ou qualquer delonga na identificação.
Os meus pais localizaram-na de imediato. A casa surgiu-me muito mais pequena. Deteriorada pela erosão do
tempo. Os antigos muros altos de pedra,
que protegiam dos olhares estranhos eram,
agora, grosseiros e baixos permitindo
abarcar um campo corroído por ervas
daninhas e por vermes. Era um local que
apenas existia na memória. Mudara a quinta? Talvez se tenha deteriorado. Não
era, porém, essa mudança que a tornava diferente, desigual da imagem da
memória. Era eu, sujeito, personagem, que se transformara. Crescera, vivera e o tempo invocado era um tempo visto por
outro sujeito, agitado e guardado por outra personagem. Descrevê-lo com esse
olhar era reinventar um lugar que nunca existira. A memória reproduz memórias
que foram reais num tempo que já não é o
mesmo. Por isso, invocá-las é reconstruir um outro passado que foi
diferentemente vivido.
Poder-se-á contrapor que, no tempo
da infância, viveu uma criança que se fez adulto. Os olhos de uma criança
registaram um mundo proporcional à sua dimensão que não corresponde àquele que
como adulto reencontra. Mas se a Memória diz respeito ao tempo vivido e sentido
poder-se-á afirmar que é fidedigna ao
registo que dela possui e transcreve. Porquê a necessidade de a confrontar no
presente? Será que a validade e a autenticidade desse registo se afirmarão? Ou será
a fluidez das palavras que dará ao
registo a actualidade a que se reporta?
Arrumar o passado não corresponde
a qualquer invocação que dele se faça. Arrumar o passado é talvez saber quem fomos e onde chegámos. Arrumar o passado talvez seja reconhecer que o presente terá findado, quando tiver acontecido. Arrumar o passado é aceitar que a memória, que dele
fica, será sempre parte integrante de uma vivência que foi nossa e que, talvez, possa ser invocada."
Maria José Vieira de Sousa, in " O livro que já escrevi".
Maria José Vieira de Sousa, in " O livro que já escrevi".
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