"A um livro, por vezes, crescem-lhe raízes para dentro do próprio leitor. É, então, possível vê-lo assentar a estacaria minuciosa, encenar-se, senão mesmo deitar lume. Dê-se-lhe voltas, e não se lhe compreende a fonte, a subtil força que o anima, nos perturba.
Por vezes, há ocasionais, discretos versos suspensos da página, que maturam sombriamente por fora, que se anicham entre os parietais. Como que redivivos. Quando falamos de livros, não chegamos, sequer a falar de livros. Falamos dos versos que se pegam ao corpo – que ofuscam. Por que há versos que trazemos ignorados como um nome. Outros: já lá estão, desde sempre, ao fundo, à nossa espera."
Luís Miguel Nava, in "Poesia Completa"1979-1994, Lisboa: Publicações Dom Quixote,(2002)
Sketch
“Vem o rapaz
à página, é o sketch, a luz às vezes é de tal intensidade que a página fica em
branco,outras porém mais fraca, o rapaz põe o poema em perspectiva, a água
ainda mal alinhavada nas bainhas dela depois lava‑se, a tensão no poema é tanta que as
imagens saltam em descargas, é assim colhido em planos vários, há alturas em
que apenas um pormenor do rosto vem à página outras em que ela aflui a nudez
toda, um nó de imagens avoluma‑se, o rapaz leva
o silêncio ao máximo, acelera‑o, é
onde ele se ergue que há no poema uma pequena confluência de astros e a rebentação
da luz é idêntica à das ondas, as imagens esticadas sob a pele irrompem pelas
mãos, abrem janelas sobre os rins, a intensidade do rapaz é então tal que é ele
quem põe em branco a página. “ Luís Miguel Nava, in "Poesia Completa"1979-1994, Lisboa: Publicações Dom Quixote, (2002)
Nos teus ouvidos
Nos teus
ouvidos isto explode
de amor,
palavra ampola sob
os astros
funcionando abril à boca das cidades, dos
imperturbáveis
muros as quais as crianças
que de
cristais nos punhos acontecem passam,
seus chapéus
brevíssimos, os indícios
de nada, o
modo de ler, de acender um texto
de amor nos
ouvidos, isto explode e entra
nesta página
o mar da minha infância, meigo
no modo de
lembrá‑lo, lê‑lo, de acender
de carícias
um texto na memória. De astros
as ruas eram
cheias que os cuspiam hoje
na minha mãe
de outrora, nas crianças de água, nos
pensamentos
nenhuns que eu punha em seus joelhos, em
seus amáveis
joelhos a que os astros acorriam,
minha mãe que
arranco ao sono, às areias virgens
das palavras,
que amanhecido eu gero, as mãos
tão de
repente em pânico nos muros.”
Luis Miguel Nava, “Películas (1979)” in “Poesia Completa”,1979-1994, Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 2002.
Sobre Luís Miguel de Oliveira Perry Nava, ( Viseu, 29 Setembro 1957-Bruxelas,10 de Maio 1995) poeta e escritor, Gastão Cruz escreveu:
"O percurso de
Luís Miguel Nava, ao longo de quinze anos, é, simultaneamente, o obsessivo
aprofundar da pseudo‑análise de um mundo
sinalizado por um conjunto de imagens que nos dá, por vezes, a sensação,
porventura ilusória, de se fechar sobre si próprio e o progressivo
obscurecimento da visão
desse mundo, desde a claridade brutal, insuportável, que banha Películas («a
luz às vezes é de tal intensidade que a página fica em branco» – «Sketch»; «Não
atentava então na claridade em que a casa e a terra a essa hora faleciam, nos
fragmentos vários do horizonte de que a luz fazia um jogo insuportável» –
«Olhando o muro»), até à treva total, que insistentemente atravessa as páginas
de Vulcão («Começam‑nos
as trevas a romper/ a carne» – «As trevas»; «As trevas engolfam‑se‑lhe através da boca e dos ouvidos» –
«Crepúsculo»)." Gastão Cruz (2002) in «Dos relâmpagos às trevas na poesia de Luís
Miguel Nava», in “Poesia Completa”, 1979-1994, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002
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