quinta-feira, 8 de maio de 2014

Falamos dos versos que ofuscam

"A um livro, por vezes, crescem-lhe raízes para dentro do próprio leitor. É, então, possível vê-lo assentar a estacaria minuciosa, encenar-se, senão mesmo deitar lume. Dê-se-lhe voltas, e não se lhe compreende a fonte, a subtil força que o anima, nos perturba.
Por vezes, há ocasionais, discretos versos suspensos da página, que maturam sombriamente por fora, que se anicham entre os parietais. Como que redivivos. Quando falamos de livros, não chegamos, sequer a falar de livros. Falamos dos versos que se pegam ao corpo – que ofuscam. Por que há versos que trazemos ignorados como um nome. Outros: já lá estão, desde sempre, ao fundo, à nossa espera."
Luís Miguel Nava, in  "Poesia Completa"1979-1994, Lisboa: Publicações Dom Quixote,(2002)
Sketch
“Vem o rapaz à página, é o sketch, a luz às vezes é de tal intensidade que a página fica em branco,outras porém mais fraca, o rapaz põe o poema em perspectiva, a água ainda mal alinhavada nas bainhas dela depois lavase, a tensão no poema é tanta que as imagens saltam em descargas, é assim colhido em planos vários, há alturas em que apenas um pormenor do rosto vem à página outras em que ela aflui a nudez toda, um nó de imagens avolumase, o rapaz leva o silêncio ao máximo, acelerao, é onde ele se ergue que há no poema uma pequena confluência de astros e a rebentação da luz é idêntica à das ondas, as imagens esticadas sob a pele irrompem pelas mãos, abrem janelas sobre os rins, a intensidade do rapaz é então tal que é ele quem põe em branco a página. “Luís Miguel Nava, in  "Poesia Completa"1979-1994, Lisboa: Publicações Dom Quixote, (2002)
Nos teus ouvidos

Nos teus ouvidos isto explode
de amor, palavra ampola sob
os astros funcionando abril à boca das cidades, dos
imperturbáveis muros as quais as crianças
que de cristais nos punhos acontecem passam,
seus chapéus brevíssimos, os indícios
de nada, o modo de ler, de acender um texto
de amor nos ouvidos, isto explode e entra
nesta página o mar da minha infância, meigo
no modo de lembrálo, lêlo, de acender
de carícias um texto na memória. De astros
as ruas eram cheias que os cuspiam hoje
na minha mãe de outrora, nas crianças de água, nos
pensamentos nenhuns que eu punha em seus joelhos, em
seus amáveis joelhos a que os astros acorriam,
minha mãe que arranco ao sono, às areias virgens
das palavras, que amanhecido eu gero, as mãos
tão de repente em pânico nos muros.”
Luis Miguel Nava, “Películas (1979)” in “Poesia Completa”,1979-1994,  Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002.

Sobre Luís Miguel de Oliveira Perry Nava, ( Viseu, 29 Setembro 1957-Bruxelas,10 de Maio 1995) poeta  e escritor, Gastão Cruz escreveu: 
"O percurso de Luís Miguel Nava, ao longo de quinze anos, é, simultaneamente, o obsessivo aprofundar da pseudoanálise de um mundo sinalizado por um conjunto de imagens que nos dá, por vezes, a sensação, porventura ilusória, de se fechar sobre si próprio e o progressivo obscurecimento da visão desse mundo, desde a claridade brutal, insuportável, que banha Películas («a luz às vezes é de tal intensidade que a página fica em branco» – «Sketch»; «Não atentava então na claridade em que a casa e a terra a essa hora faleciam, nos fragmentos vários do horizonte de que a luz fazia um jogo insuportável» – «Olhando o muro»), até à treva total, que insistentemente atravessa as páginas de Vulcão («Começamnos as trevas a romper/ a carne» – «As trevas»; «As trevas engolfamselhe através da boca e dos ouvidos» – «Crepúsculo»)." Gastão Cruz (2002) in  «Dos relâmpagos às trevas na poesia de Luís Miguel Nava»,  in “Poesia Completa”, 1979-1994, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002

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