EU SOU UMA
PARTE DAQUILO QUE LI
Por EUGÉNIO LISBOA
"Os livros – a
escrita – não existiram sempre. Só há vinte mil anos é que o homem traçou, na
rocha , os seus primeiros desenhos. E só
três mil anos depois ensaiou os primeiros sinais que estariam na origem
do que hoje chamamos escrita. O livro tal como hoje o concebemos, nasce já só
no século XV (1450), com a famosa Bíblia Latina, impressa por Gutenberg. De aí
em diante, a produção de livros não cessou de crescer, proporcionando aos
humanos a fruição fácil desse vício impune: a leitura.
Descoberto o
prazer ( e a utilidade) do livro, o homem não tem cessado de lhe cantar as
virtudes. O célebre jornalista e melómano inglês Bernard Levin, leitor omnívoro
e comentador encantado de livros de todas as espécies e formatos, exclamou um
dia: « Livro – o som mais nobre que o homem jamais emitiu.» E o não menos
célebre Logan Pearsall Smith propunha,
no modo desbocado que lhe era peculiar: « Dêem-me um livro e uma cama e fico
perfeitamente feliz.»
Todos nós, em
maior ou menor medida, temos memória , ao longo da nossa vida, de momentos
inesquecíveis de encontro com um
livro determinado: momentos em que nos parece que a nossa vida, de algum modo, mudou. Nós não somos, depois dessa
leitura, os mesmos que éramos antes. Ou , por outras palavras : ao lermos o
livro, descobrimos que nos estamos a ler a nós próprios: estamos perante uma descoberta que é também uma transformação. E o mais interessante é
que isto não tem necessariamente de acontecer com um «grande livro» . Quando
ainda muito novo, li a Família sem Nome,
de Júlio Verne, não senti uma emoção menor
do que aquela que me apanhou
quando, um pouco mais tarde, li Humilhados
e Ofendidos ou Está Morta!, de
Dostoiewsky, ou, também ainda adolescente, fui submetido à magia cintilante do
teatro de Oscar Wilde. Em qualquer destes momentos, senti, com grande
intensidade e fulgor, que nada ficava na mesma. Podia citar outros livros que nesses anos de formação deslumbrada,
igualmente me atingiram: Le Rouge et le
Noir , de Stendhal ( apaixonei-me
perdidamente pela Senhora de Rênal) , Codine de Panait Istrati, Assia,
de Ivan Turguenev, Quo Vadis?, de Henry Sienkiewicz, Tonio Kroger , de Thomas Mann, Les
Thibault, de Roger Marin du Gard, A
Velha Casa , de José Régio, Adeus às
Armas, de Ernest Hemingway, Candide, de
Voltaire, A Vida Inteira, de Sally
Salminenn, A Aventura em Budapeste, de Ferenc
Kormendi, sem falar nas Vidas Paralelas, de Plutarco, no teatro
de Eugene O’Neill, ou nos romances de Charlotte Bronte … De todos estes livros (e
de outros que vieram depois) fiquei eterno devedor e eterno amigo. Dizia um
escritor americano de romances policiais que são também ( e mais simplesmente)
grandes romances de sondagem da sociedade americana, que «um bom livro na
prateleira da nossa estante é um amigo que nos volta as costas e continua a ser nosso amigo». Todos estes
livros que lemos e nos quais nos lemos ficaram a ser uma parte de nós e
do nosso despertar. Por isso dizia John Kieran : « Eu sou uma parte de tudo o
que li ». André Gide confessava a dívida
profunda que na sua formação e no seu autoconhecimento, ficaria a ter para com
livros tão diferentes como a Bíblia e
As Mil e uma Noites: com livros tão
contraditórios um do outro e que tão bem exprimem as profundas contradições que
estiveram na origem da obra tão sedutoramente diversa e de pulsões tão
divergentes como é a do autor de Les Faux
Monnayeurs. E também Henry de Montherlant nunca escondeu o fascínio que
sobre si teve o mundo romano tal como o conheceu, pela primeira vez, no romance
Quo Vadis? E nos textos de Tito
Lívio, de Suetónio, de Tácito e de Plutarco.
O grande
leitor torna-se quase sempre um leitor compulsivo: Somerset Maugham, o grande
contista inglês que veio na esteira de Maupassant, confessava: “ Prefiro ler um
horário ou um catálogo a ficar sem ler”. Mas esta leitura compulsiva e
imparável pode também ser um sinal negativo. Ler de mais é tão mau ou pior do que não ler:
dizia Oscar Wilde que “ vivemos numa época em que se lê de mais para se poder
ser sábio”. Porque, não tenhamos dúvidas, o ler
demasiado é quase sempre um sintoma de preguiça mental. “ Quem sabe”,
perguntava com malícia, Edward Young, “ se Shakespeare não teria pensado menos,
se tivesse lido mais?”. O nosso ensaísta António Sérgio chamou, com grande
ênfase, a atenção para o facto de que o homem culto não é aquele que leu muito,
mas sim aquele que leu o que leu ( que até pode não ser demasiado) com uma
intensa atenção crítica. “ Ler sem reflectir é como comer sem digerir “,
observava Edmund Burke. Só a leitura crítica nos pode realmente transformar,
isto é, só uma colaboração animada entre o leitor e o livro pode levar àquilo
que constitui a verdadeira cultura. “ Quando lemos um clássico não vemos mais em nós do que víramos antes”, dizia Clifton
Fadiman. É verdade mas, para que isso aconteça, é necessário que a leitura se
faça com investimento crítico intenso.
Ler
criticamente bons livros é sempre um percurso de descoberta, mas a leitura
torna-se mais interessante se for partilhada. Era isso mesmo que dizia essa grande contista neozelandeza, Katherine
Mansfield, a autora do célebre The Garden
Party :“ O prazer de qualquer leitura
é redobrado quando se vive com outra pessoa que partilha os mesmos livros.”
A leitura
deve ser inteligente e crítica, não tem de ser voraz, mas também não precisa de
ser fanaticamente organizada. Todos os grandes leitores são um pouco erráticos,
saltando, com prazer e proveito, de um romance de Stendhal para um ensaio de Montaigne
e, deste, para um poema de Keats ou uma peça de teatro de Garrett. Por isso, o
poeta galês Dylan Thomas não tinha pejo de declarar: " A minha educação
foi a liberdade que tive de ler
indiscriminadamente e constantemente, com os olhos a saltarem-me das órbitras. “
Só uma
leitura assim – apaixonada, intensa, inteligentemente crítica – poderá conduzir
a que vivamos mais vidas e descubramos mais mundos – lá fora e dentro de nós –
do que as pessoas que não leiam deste modo. O professor universitário canadiano
Samuel Hayakawa, homem de convicções e de acção forte e decidida, disse isto
com que termino este modesto convite à descoberta e à metamorfose através da
leitura : “ Em sentido muito real, as pessoas que leram boa literatura viveram
mais do que as pessoas que não sabem ler ou não se querem dar ao trabalho de
ler…Não é verdade que tenhamos uma só vida para vivermos; se soubermos ler,
poderemos viver tantas vidas e tantas variedades de vida quantas desejarmos. “
Ler é transformarmo-nos de um em muitos – de singular em plural.”
Eugénio Lisboa, in ”Miscelânea – INDÍCIOS DE OIRO II”,
Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 2009
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