O
BARCO DA MEMÓRIA
Manoel de Andrade
A infância sempre volta na hora humana do
crepúsculo...
Vem de um tempo silenciado,
é um eco que cresce,
um fantasma que ronda e volta comovido,
surge
remando no barco da memória,
abre na alma um sulco imaginário, tão
formoso
e aporta para povoar a aldeia melancólica da
saudade.
Traz consigo os seus inconfessáveis
segredos,
as tardes azuis e açucaradas,
a dizer-nos que só se é criança uma vez na
vida
e que tudo que lá ficou é um mágico clarão,
um enigma que arde imperecível,
um nunca mais.
Em cada dia houve um tempo...,
um tempo em que o mar banhou minha
inocência.
Herdei essa extensão entre o horizonte e o
branco cinturão de areia,
herdei do mar essa salgada lembrança,
o mar, sempre o mar, meu mágico recanto,
aquele mar que tanto amei
e onde o coração navegou o meu encanto.
A praia, o território itinerante nos meus
passos,
os botos, em cada dia, nadando para o sul,
o voo preguiçoso das gaivotas,
as velas ligeiras ante a paz invencível da
paisagem.
o azul e a luz espelhados sobre as águas da
manhã,
as canoas trazendo suas translúcidas
escamas,
o mantra suave das ondas,
esse rumor ainda presente no caracol dos
meus ouvidos.
Eu tinha quatro, cinco, seis e sete anos,
a alma banhada, as retinas submersas
e em cada gesto uma sílaba antecipada do
meu canto.
Tinha as mãos cheias de caramujos, de conchas,
e a vigiar meus olhos,
o espanto.
Tinha meus castelos,
a espuma espessa e flutuante
e três castas amantes para brincar.
Tinha os fulgores da aurora, os mistérios
constelados,
uma pequenina lagoa
e um canal estreito por onde as tainhas
entravam no inverno.
Eu tinha de minha mãe o seu regaço: mel e
ternura repartidos.
Lembro meu avô cortando lenha, meu retrato
mais antigo.
Eu o chamava Pai Trajano.
Um dia ele levou minha pobreza seminua pela
mão,
e lá, além da ponte, na loja do Seu Abrão,
vestiu-me uma camisa colorida.
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Não, Drummond, não se dissipa nunca a
merencória infância.
Curitiba, 26 de Janeiro de 2014
Manoel de Andrade
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