J.M. Coetzee – Uma dilacerante ambivalência
Por Eugénio Lisboa
"O Prémio Nobel não foi nunca, não é e não será nunca
uma garantia de imortalidade: porque tem premiado um incontável número de
mediocridades ou, em qualquer dos casos, de autores que hoje ninguém lê, nem
sabe quem sejam (Sully Prudhomme, Frédéric Mistral, José Echegaray, Rudolf
Eucken, F.E. Sillanpää, Verner V. Heidenstam, etc. etc.) e tem, por outro lado,
deixado de fora inúmeros autores de indiscutível grandeza e assegurada
perenidade (Tolstoi, Ibsen, Strindberg, Henry James, Valéry, Proust, Robert
Frost, Mark Twain, Virginia Woolf, Graham Greene, Guimarães Rosa, Carlos
Drummond de Andrade, Claudel, António Machado, Junichiro Tanizaki, Karen
Blixen, etc. etc.). Mas o Prémio Nobel, indiscutivelmente, seduz: personalidades
rebeldes e dificilmente institucionalizáveis, como André Gide ou Roger Martin
du Gard, resistiram a eméritas honras, do seu próprio país, mas cederam por fim
ao fascínio do Nobel. Porém Shaw, do lado dos intratáveis, aceitou o diploma
mas recusou escarninhamente o dinheiro. Tolstoi mandou recado forte, em 1906,
ano em que o prémio lhe iria, quase certamente, ser atribuído, avisando que
seria melhor não o fazerem: não queria
fitas mas, se a Academia insistisse, teria de recusar. Montherlant exigiu de
quantos pretenderam candidatá-lo (e não foram poucos), que o não fizessem: a
gestão quase mundana – e quase inútil – do período pós-prémio, iria tirar-lhe
tempo e energia melhor consagrados ao acabamento da sua obra monumental. Sartre – num dos seus poucos momentos altos
– recusou mesmo o diploma e o dinheiro. E não mandou avisos: quis, de
verdade, bater com a porta. E quando perguntaram a Valéry – a quem nunca
tinham achado que valesse a pena dar o prémio – o que achava ele se o
galardão fosse dado a Gabriela Mistral, mostrou todo o seu desprezo pelos
académicos suecos, respondendo: por que não, conhecia a senhora, era boa pessoa
e simpática... Seja como for, o Prémio, às vezes, acerta. E este ano de 2003, a
Academia Sueca, ao premiar o génio dilacerantemente ambíguo, profundo e secreto
de J.M. Coetzee, acertou em cheio: não lhe deu prestígio, pendurou-se nele.
Coetzee vale mais do que o Prémio. Todos os grandes – mesmo quando o não sabem
– valem mais do que qualquer prémio.
O autor de Disgrace, a quem Rian Malan
classificou de “um génio velado” e retratou como um ser “intensamente privado”,
de escrita “velada e oblíqua”, é, por outro lado, um espantoso criador de
desassossegos. É um daqueles escritores que incomoda todos os regimes porque a
sua arte intensa, secreta e profunda busca sondar, sem preconceitos, a verdade
da condição humana e não dizer coisas blandiciosas e politicamente correctas,
que satisfaçam esta ou aquela ideologia (em poder ou em contrapoder). O autor
de Waiting for the Barbarians (1980) incomodou mortalmente os ideólogos
do apartheid (termo, que aliás, nunca precisou de usar, na sua escrita
elíptica mas nem por isso menos afrontosa) e o autor de Disgrace (1999)
não irritou menos o actual regime sul africano: uma semana antes do Nobel, um
importante jornal em Johanesburg desancava o recatado autor, a viver
actualmente na Austrália... Tinha razão Soljenitzine: os governos nunca
suportam os grandes escritores – preferem sempre os medíocres. Claro que o
anúncio do Nobel levou o Presidente ao faz-de-conta e aos orgasmos do
protocolo: if you cannot beat them, join them, diz a sabedoria popular
anglo-saxónica.
Coetzee é também, além do ficcionista que muitos
conhecem – alguns dos seus importantes romances estão traduzidos em português –
um ensaísta notável. É de 2001 o seu belo livro Stranger Shores, que
inclui textos assinaláveis como “What is a Classic? A
lecture”, “Dostoevsky: the Miraculous Years”, “Translating Kafka”, “The Essays
of Joseph Brodsky”, “Gordimer and Turguenev”, “South African Liberals: Alan
Paton, Helen Suzman”, entre muitos outros. É precisamente no ensaio interessantíssimo sobre
Nadine Gordimer e Ivan Turguenev que se pode ler, nas entrelinhas, não pouco de
revelador sobre o próprio génio de Coetzee: as suas perplexidades, o seu
profundo senso de indignação e ultraje, mas também a sua repugnância instintiva
em “reduzir” a complexidade da condição
humana e dos conflitos sociais a uma fórmula de radicalismo monovalente.
Falando de Gordimer e do grande romancista russo do século XIX e do facto de
terem ambos querido reconciliar a liberdade de exprimirem “uma visão profunda,
intensa e privada” ou seja, “a verdade tal como a viam”, com um certo
reconhecimento dos “imperativos políticos” da sua geração, Coetzee estava a dar
voz à agonia civilizada do seu torturado percurso. É que o autor de Waiting
for the Barbarians, se tinha todas as coragens políticas – tal como
Turguenev - . não tinha menos o desejo de ser profundamente leal à visão
implacável de uma condição humana que o fim do apartheid não fez
necessariamente ascender a um estatuto de maior nobreza. Do mesmo Turguenev que
foi, na Rússia do século XIX, dos primeiros a emancipar os seus servos, diz
Coetzee, no aludido ensaio: “Em consequência de apresentar o seu herói, Bazarov
[do romance Pais e Filhos], na sua complexidade demasiado humana,
Turguenev teve que fazer face à ira e desprezo dos jovens radicais russos, que
até aí o tinham considerado o seu campeão mas agora se sentiam por ele
esfaqueados nas costas.” Acrescentando: “Embora desapontado pela resposta
deles, Turguenev não arredou pé. Como artista, dizia ele, tinha que perseguir a
verdade. «No caso em questão, a vida, de acordo com as minhas ideias, acontecia
ser assim, e aquilo que eu acima de tudo pretendia era ser sincero e
verdadeiro». E algures: «Só os que não são capazes de fazer melhor se submetem
a um determinado tema ou levam a preceito um programa»”.
Turguenev pertencia a uma geração que, oprimida pela
censura brutal do czar, “infectava” de ideologia frenética o tecido profundo da
criação literária. Para eles, o olímpico respeito do autor de Pais e Filhos
para com o complexo plurifacetado dos seus personagens traduzia-se por uma
traição à causa. Numa África do Sul, equivalentemente acossada pela boçalidade
afrontosa do apartheid, era-se também tentado a contaminar de ideologia
aquecida ao rubro a arte que se ia fazendo: não alinhar vistosamente com os
“engagés”, a pretexto de subtilezas de sondagem ontológica seria claramente de
rejeitar. Enquanto as fábulas sofisticadamente simbólicas do autor de Life
and Times of Michael K podiam ler-se, sem grandes engulhos, como setas
endireitadas ao coração do regime segregacionista, os jovens e menos jovens
radicais não viam inconveniente. A subtileza da escrita e da perscrutação
fininha dos seres e seus motivos estavam já lá, como ameaça pendente, mas, de
momento, fazia-se vista grossa. Porém, livros como Disgrace, ainda que
insusceptíveis de uma leitura simplificada, não deixavam de incluir, na sua
complexidade inquietante e por vezes sinistra, a pintura de uma sociedade de
violência, banditagem e vingança racial que a história pode explicar mas não
isentar. Ainda falando do grande escritor russo, amigo quase irmão de Flaubert,
Coetzee dizia: “Este desdobrar da tragédia – de um lado, universal e apolítica,
do outro, denunciadora e sócio-política – torna a «mensagem» de Pais e
Filhos difícil de encapsular e contribui para o mito de Turguenev como
artista imparcial e olímpico.” Talvez por isso, tanto o russo como o sul africano
tenham decidido viver fora dos
respectivos países: Turguenev em França, Coetzee na Austrália. O frenesi
ideológico repele a complexidade e a riqueza da sondagem mesmo daqueles que
nunca fugiram, em momentos decisivos, ao combate duro e à denúncia arriscada. A
tentativa agónica de reconciliar uma visão trágica universal e apolítica com um
vector de denúncia sócio-política não satisfaz nunca os jovens radicais
sedentos de certezas fáceis. Para esses, o Nobel de Coetzee será sempre uma
injúria. O respeito pela complexidade do real, a pintura dilacerada de uma
sociedade minada de feridas que se procura compreender em profundidade e sem
parti-pris primários, a gestão magistral e por vezes quase distanciada de um
caldeirão de conflitos cuja solução se não vê que vá facilmente emergir – tudo
isto faz de John Maxwell Coetzee um dos mais importantes escritores vivos e um
modelo daquela integridade artística sem a qual não vale a pena a aventura de
criar." Eugénio Lisboa, em Crónica publicada no Jornal de Letras.
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