quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

J.M. Coetzee – Uma dilacerante ambivalência


J.M. Coetzee – Uma dilacerante ambivalência
Por Eugénio Lisboa
"O Prémio Nobel não foi nunca, não é e não será nunca uma garantia de imortalidade: porque tem premiado um incontável número de mediocridades ou, em qualquer dos casos, de autores que hoje ninguém lê, nem sabe quem sejam (Sully Prudhomme, Frédéric Mistral, José Echegaray, Rudolf Eucken, F.E. Sillanpää, Verner V. Heidenstam, etc. etc.) e tem, por outro lado, deixado de fora inúmeros autores de indiscutível grandeza e assegurada perenidade (Tolstoi, Ibsen, Strindberg, Henry James, Valéry, Proust, Robert Frost, Mark Twain, Virginia Woolf, Graham Greene, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Claudel, António Machado, Junichiro Tanizaki, Karen Blixen, etc. etc.). Mas o Prémio Nobel, indiscutivelmente, seduz: personalidades rebeldes e dificilmente institucionalizáveis, como André Gide ou Roger Martin du Gard, resistiram a eméritas honras, do seu próprio país, mas cederam por fim ao fascínio do Nobel. Porém Shaw, do lado dos intratáveis, aceitou o diploma mas recusou escarninhamente o dinheiro. Tolstoi mandou recado forte, em 1906, ano em que o prémio lhe iria, quase certamente, ser atribuído, avisando que seria melhor  não o fazerem: não queria fitas mas, se a Academia insistisse, teria de recusar. Montherlant exigiu de quantos pretenderam candidatá-lo (e não foram poucos), que o não fizessem: a gestão quase mundana – e quase inútil – do período pós-prémio, iria tirar-lhe tempo e energia melhor consagrados ao acabamento da sua obra monumental.   Sartre – num dos seus poucos momentos altos – recusou mesmo o diploma e o dinheiro. E não mandou avisos: quis, de verdade, bater com a porta. E quando perguntaram a Valéry – a quem nunca tinham achado que valesse a pena dar o prémio – o que achava ele se o galardão fosse dado a Gabriela Mistral, mostrou todo o seu desprezo pelos académicos suecos, respondendo: por que não, conhecia a senhora, era boa pessoa e simpática... Seja como for, o Prémio, às vezes, acerta. E este ano de 2003, a Academia Sueca, ao premiar o génio dilacerantemente ambíguo, profundo e secreto de J.M. Coetzee, acertou em cheio: não lhe deu prestígio, pendurou-se nele. Coetzee vale mais do que o Prémio. Todos os grandes – mesmo quando o não sabem – valem mais do que qualquer prémio.
O autor de Disgrace, a quem Rian Malan classificou de “um génio velado” e retratou como um ser “intensamente privado”, de escrita “velada e oblíqua”, é, por outro lado, um espantoso criador de desassossegos. É um daqueles escritores que incomoda todos os regimes porque a sua arte intensa, secreta e profunda busca sondar, sem preconceitos, a verdade da condição humana e não dizer coisas blandiciosas e politicamente correctas, que satisfaçam esta ou aquela ideologia (em poder ou em contrapoder). O autor de Waiting for the Barbarians (1980) incomodou mortalmente os ideólogos do apartheid (termo, que aliás, nunca precisou de usar, na sua escrita elíptica mas nem por isso menos afrontosa) e o autor de Disgrace (1999) não irritou menos o actual regime sul africano: uma semana antes do Nobel, um importante jornal em Johanesburg desancava o recatado autor, a viver actualmente na Austrália... Tinha razão Soljenitzine: os governos nunca suportam os grandes escritores – preferem sempre os medíocres. Claro que o anúncio do Nobel levou o Presidente ao faz-de-conta e aos orgasmos do protocolo: if you cannot beat them, join them, diz a sabedoria popular anglo-saxónica.
Coetzee é também, além do ficcionista que muitos conhecem – alguns dos seus importantes romances estão traduzidos em português – um ensaísta notável. É de 2001 o seu belo livro Stranger Shores, que inclui textos assinaláveis como “What is a Classic? A lecture”, “Dostoevsky: the Miraculous Years”, “Translating Kafka”, “The Essays of Joseph Brodsky”, “Gordimer and Turguenev”, “South African Liberals: Alan Paton, Helen Suzman”, entre muitos outros. É precisamente no ensaio interessantíssimo sobre Nadine Gordimer e Ivan Turguenev que se pode ler, nas entrelinhas, não pouco de revelador sobre o próprio génio de Coetzee: as suas perplexidades, o seu profundo senso de indignação e ultraje, mas também a sua repugnância instintiva em “reduzir”  a complexidade da condição humana e dos conflitos sociais a uma fórmula de radicalismo monovalente. Falando de Gordimer e do grande romancista russo do século XIX e do facto de terem ambos querido reconciliar a liberdade de exprimirem “uma visão profunda, intensa e privada” ou seja, “a verdade tal como a viam”, com um certo reconhecimento dos “imperativos políticos” da sua geração, Coetzee estava a dar voz à agonia civilizada do seu torturado percurso. É que o autor de Waiting for the Barbarians, se tinha todas as coragens políticas – tal como Turguenev - . não tinha menos o desejo de ser profundamente leal à visão implacável de uma condição humana que o fim do apartheid não fez necessariamente ascender a um estatuto de maior nobreza. Do mesmo Turguenev que foi, na Rússia do século XIX, dos primeiros a emancipar os seus servos, diz Coetzee, no aludido ensaio: “Em consequência de apresentar o seu herói, Bazarov [do romance Pais e Filhos], na sua complexidade demasiado humana, Turguenev teve que fazer face à ira e desprezo dos jovens radicais russos, que até aí o tinham considerado o seu campeão mas agora se sentiam por ele esfaqueados nas costas.” Acrescentando: “Embora desapontado pela resposta deles, Turguenev não arredou pé. Como artista, dizia ele, tinha que perseguir a verdade. «No caso em questão, a vida, de acordo com as minhas ideias, acontecia ser assim, e aquilo que eu acima de tudo pretendia era ser sincero e verdadeiro». E algures: «Só os que não são capazes de fazer melhor se submetem a um determinado tema ou levam a preceito um programa»”.
Turguenev pertencia a uma geração que, oprimida pela censura brutal do czar, “infectava” de ideologia frenética o tecido profundo da criação literária. Para eles, o olímpico respeito do autor de Pais e Filhos para com o complexo plurifacetado dos seus personagens traduzia-se por uma traição à causa. Numa África do Sul, equivalentemente acossada pela boçalidade afrontosa do apartheid, era-se também tentado a contaminar de ideologia aquecida ao rubro a arte que se ia fazendo: não alinhar vistosamente com os “engagés”, a pretexto de subtilezas de sondagem ontológica seria claramente de rejeitar. Enquanto as fábulas sofisticadamente simbólicas do autor de Life and Times of Michael K podiam ler-se, sem grandes engulhos, como setas endireitadas ao coração do regime segregacionista, os jovens e menos jovens radicais não viam inconveniente. A subtileza da escrita e da perscrutação fininha dos seres e seus motivos estavam já lá, como ameaça pendente, mas, de momento, fazia-se vista grossa. Porém, livros como Disgrace, ainda que insusceptíveis de uma leitura simplificada, não deixavam de incluir, na sua complexidade inquietante e por vezes sinistra, a pintura de uma sociedade de violência, banditagem e vingança racial que a história pode explicar mas não isentar. Ainda falando do grande escritor russo, amigo quase irmão de Flaubert, Coetzee dizia: “Este desdobrar da tragédia – de um lado, universal e apolítica, do outro, denunciadora e sócio-política – torna a «mensagem» de Pais e Filhos difícil de encapsular e contribui para o mito de Turguenev como artista imparcial e olímpico.” Talvez por isso, tanto o russo como o sul africano tenham  decidido viver fora dos respectivos países: Turguenev em França, Coetzee na Austrália. O frenesi ideológico repele a complexidade e a riqueza da sondagem mesmo daqueles que nunca fugiram, em momentos decisivos, ao combate duro e à denúncia arriscada. A tentativa agónica de reconciliar uma visão trágica universal e apolítica com um vector de denúncia sócio-política não satisfaz nunca os jovens radicais sedentos de certezas fáceis. Para esses, o Nobel de Coetzee será sempre uma injúria. O respeito pela complexidade do real, a pintura dilacerada de uma sociedade minada de feridas que se procura compreender em profundidade e sem parti-pris primários, a gestão magistral e por vezes quase distanciada de um caldeirão de conflitos cuja solução se não vê que vá facilmente emergir – tudo isto faz de John Maxwell Coetzee um dos mais importantes escritores vivos e um modelo daquela integridade artística sem a qual não vale a pena a aventura de criar." Eugénio Lisboa, em Crónica  publicada no  Jornal de Letras.

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