Paisagem Com Mulher e Mar Ao Fundo
“(…) decidir o momento da sua própria morte,
ser dono do seu tempo, do seu desespero, assumir o desespero assim andando de
vestido claro entre flores de sardinheira, no adro enfeitado com festões de
papel, no meio de pessoas que se afadigam montando o tablado da quermesse - à
noite haveria o cheiro a flores e a erva pisada, a vinho, a pó, a suor, a
pólvora, corpos deslizando, compactos, entre a música alta, alguém grita, sobre
o tablado, o número em que caiu a sorte na última rifa e a música apaga a sua
voz, sobe de repente, rebenta como foguetes estralejando, uma música alta como
uma fogueira acesa, é impossível abrir caminho entre os vultos até ao outro lado
do tablado para retirar o que lhe coube em sorte, copo de vidro, jarro de metal, pote de barro, lote de café, pano de mesa, mas o jogo poderia de repente ser
outro e o número saído ser o número da morte, e o homem gritar por exemplo do
alto do tablado: os que tiverem este número são os que vão ser mortos, ou
anunciar ainda mais alto, por entre a música subindo: atenção agora, é uma
jogada especial, as mães que tiverem este número são aquelas cujos filhos vão
ser mortos – e a tômbola girar de repente na noite, uma tômbola gigante rodando
entre a terra e o céu, que de súbito se transforma em carrocel, em grande roda
iluminada, de onde os filhos descem devagar, de um outro continente até ao
chão, segurando a espingarda e todos mortos.
Crianças meio
despidas assomam às portas, chapinham descalças nas sarjetas, sentam-se numa
sombra no pequeno jardim ao fim da rua, ao lado de mães que incansavelmente
fazem malha, (…) oh, não se apresse, disse à mulher sentada ao lado, afinal tem
tanto tempo à sua frente, tanto tempo até perder o seu filho, (…) porque apesar
da falta de higiene e da subnutrição já tem bastantes probabilidades de que ele
não morra na primeira infância, (…) embora depois possa sempre haver um
descuido, (…) milhares de crianças morrem por descuido das mães, (…) mas é
razoável admitir que ele terá tempo de crescer e de ir vestindo camisolas de
todos os tamanhos e de todas as cores, você parece ser uma mãe eficiente e
vigilante, capaz de o proteger de uma morte absurda, excluindo a morte em
combate, porque essa claro que não é absurda, mas profundamente repassada de
sentido, contra essa nem sequer Deus tem poder algum, porque é a excepção óbvia
do segundo mandamento, mas (…) pode ficar tranquila, (…) todas as precauções
serão tomadas na escolha do local, na observância da profundidade necessária à
sepultura, (…) procurarão as melhores folhas e ramos para dissimular a campa,
que por outro lado assinalarão de modo convencional, adaptado a cada caso,
mesmo em plena selva, onde os pontos de referência são raros e difíceis, (…)
claro que o espólio pessoal lhe será devolvido, sempre que possível, e pagarão
todas as despesas do transporte, mas é evidente que não estou a pôr em causa
instituição alguma, todas as instituições são, como se sabe, invulneráveis,
falo apenas de crianças, da morte dos filhos, é uma conversa à toa, um tema
banal e sem importância, muito próprio para falar assim, sem pensar, numa manhã
de Verão, enquanto se tricota, (…) mas como eu ia a dizer é tudo sem problemas,
(…) você apenas recebe e agradece, porque há também a considerar a pensão de
sangue, para já não falar nas medalhas, que são dadas ainda em alguns casos e
se poderão expor, na sala de visitas, e assim, enquanto Ele* estiver no seu
posto de guarda e de vigia o país estará seguro e confiante, as crianças
crescerão felizes no meio de jardins floridos, as mães conversarão, exactamente
como nós, sentadas em bancos, alegres, despreocupadas, sem pensar em nada
porque Ele pensará em tudo, num gesto de espontânea gratidão mandaram fazer um
monumento, uma mulher segurando ao colo uma criança, e em baixo, no pedestal de
pedra, uma legenda comovida e simples:
“A O.S.*, as
mães agradecidas”,
só que não é
assim, não é assim, gritou, é a estátua de um soldado morto, caindo por terra,
varado por mil balas, e em baixo, no pedestal de pedra, uma legenda comovida e
simples:
“A O.S., as
mães agradecidas”,
oh, mas por
favor não se levante e não grite, porque então eu gritarei muito mais alto, e
sobretudo não se finja inocente nem se arme em vítima porque também é culpada,
somos todos culpados e não adianta fingir mais tempo, é melhor gritar a
verdade, mas é evidente que é mais fácil ficar sentada a tricotar do que pensar
alguma vez nessas coisas, (…) é para que as mulheres não pensem que se protege
tanto a sagrada instituição do tricô, mas é tempo de gritar que também nós
pactuámos contra os filhos, porque nenhuma de nós disse “Não vás”, e é inútil
fingir que não se é culpada,
seus olhos
ardendo, espetados com agulhas, seus olhos ardendo de amor de ódio e de
lágrimas – desaparecer sem deixar atrás de mim nenhum rasto, apagar da vida os
sinais de mim, ninguém para continuar-me, nenhum filho, nenhum homem para
lembrar-me, para guardar a recordação do meu corpo na memória táctil do seu
corpo, nenhum vestígio, nenhum rasto, a casa arrumada, limpa, vazia, como se
ninguém tivesse estado aqui, pisado o chão, mexendo nas coisas, andando entre
as paredes, desesperando-se entre a janela e a porta, as cortinas caindo nas
suas pregas perfeitas, a camilha da mesa bem estendida, debaixo da jarra azul,
o tapete de sisal sem rugas, o lugar habitual dos objectos respeitado, ninguém
passou por aqui, ninguém ficou na minha vida, só o vento, o sol, o mar
continuam batendo, a praia deserta, sem pegadas, vazia de pessoas, meu filho
morto e o mar batendo.”
Teolinda Gersão, in
“Paisagem Com Mulher e Mar Ao Fundo”( Romance) ”, Antologia de textos
on-line da autoria de escritoras portuguesas e africanas de expressão
portuguesa do P.E.N. Clube Português
*Ele – Salazar, que governou Portugal em
regime de ditadura durante mais de quatro décadas
*O.S. – Oliveira Salazar
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