Neste romance, o amor surge adúltero, carnal e quase erótico entre a senhora Y e um artista plástico, Fernão. Um caso de amor escaldante onde o poder da sedução impera logo nas primeiras páginas do romance. A maestria poética de David Mourão Ferreira ressalta na narração deste Amor Feliz..
" Segredo-lhe estas palavras com a boca a subir-lhe das espáduas até à nuca, e da nuca até à concha do ouvido. Já perto de um mês correu sobre o dia em que tão atrasada aqui chegou, trazendo o maillot branco, em vez do xaile branco, dentro do saco do Hermès. Acabámos agora de ser, em cima desse divã, grutas e gritos abafados da mesma praia submersa ; raízes, ramos, folhas, frutos, da mesma árvore na horizontal.
Estamos ambos de pé, estamos ambos nus, diante do enorme espelho aí à largura dessa parede: e todo eu me escondo atrás do seu corpo, assim lhe mostrando como só o seu corpo ali merece reflectir-se. Acaricio-lhe e sopeso-lhe os seios, ora um ora outro, na palma da minha mão direita, enquanto com os dedos da mão esquerda lhe modelo o pescoço, o ombro, o flanco, o ventre, o deslumbrante nascimento das coxas, procurando suplicar-le, através destes gestos, que finalmente se orgulhe de umas linhas tão puras, de umas formas tão enxutas e tão harmoniosamente distribuídas. Mas os seus olhos apenas espiam, na superfície do espelho, o reflexo do meu rosto semioculto.
(...) Raízes, ramos, folhas, frutos. E a gruta; e o grito. Nem tratámos , desta vez, de sequer alcançar o divã. Bastou-nos , defronte do espelho, o escasso rectângulo desse tapete. E dificilmente percebo como conseguimos, no fim, içarmo-nos até à poltrona . Encontramo-nos, no entanto, muito mais despertos do que supúnhamos: sentimo-nos leves, límpidos, alados, lúcidos, como depois de uma trovoada." David Mourão-Ferreira, in " Um Amor Feliz", Editorial Presença, 1ª edição, Lisboa, 1986
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