“ Em Nome da
Terra ”, romance de Vergílio Ferreira, tem a forma de uma
longa carta escrita por um homem, um juiz, à sua
mulher, Mónica, que já morreu. Uma intensa carga
emocional atravessa toda a carta que foi escrita no fim da vida desta
personagem.
João, o juiz, tenta reconstituir o passado que , por vezes
, surge quase irreal , mas pejado de sensualidade e de questões em torno do
envelhecimento. O amor que nutre pela mulher é eterno, embora a incerteza da sua morte perpasse na reconstituição de um passado vivido que deixou marcas profundas.
"Querida. Veio-me hoje uma
vontade enorme de te amar. E então pensei: vou-te escrever. Mas não te quero
amar no tempo em que te lembro. Quero-te amar antes, muito antes. É quando o
que é grande acontece. E não me digas diz lá porquê. Não sei. O que é grande
acontece no eterno e o amor é assim, devias saber. Ama-se como se tem uma
iluminação, deves ter ouvido. (...) Ou como quando se dá uma conjugação de
astros no infinito, deve vir nos livros."
“Com amor, ternura, lavo-te. É o teu
corpo sem ti. Mas tenho a memória inteira para te reconstituir ao apelo
do meu sofrimento.(...)Tenho nas mãos a memória do teu
corpo, do boleado doce do teu corpo. As pernas, os seios, deixa-me encher as
mãos outra vez. O fio ardente da tua pele. A face. Mal te vejo os olhos, mas o
teu olhar cai sobre mim em torrente. (…)Espera, deixa-me
ver-te devagar. Dás uns passos, bates uma palmada no chão e sobes alto e lá no
ar dás uma volta sobre ti, mas antes de caíres de pé, imóvel, fico a ver-te
parada no ar. Corpo elástico, esguio, fico a ver-te. Flutuas imponderável, a
Terra não tem razão sobre ti. Vejo-te no espaço, todo o corpo elástico numa
curva dos pés até ao extremo das mãos, ou talvez não, recomeça o salto para ver
melhor. Talvez o corpo não em prancha ao alto mas enrolado sobre si e giras no
ar em rodízio até te desenrolares e caíres depois em pé firme. Queria dizer-te
como isso me maravilhou, o teu corpo poderoso, desprendido das coisas, liberto
da sua condição bruta, feito de um esplendor imaterial. Terei dito bem?
Imaterial. Quanta coisa havia nele, os teus ossos, as tuas vísceras, mas tudo
existia leve e eu só lhe via a sua forma perfeita de voo. Há uma órbita da
exactidão como se diz dos astros e tu seguia-la, um rigor matemático com que o
universo existe. (…) Bati palmas, elas ressoaram pelo espaço do Olimpo. Não fui
bem eu que as bati mas o duplo de mim, não te sei explicar. As palmas foram à
frente e eu já não as pude apanhar. Porque o homem, minha querida, tem sempre
em si um outro de si e só num tarado é que os dois coincidem. Também não sabia
bem porque o fiz, agora sei. Claro, havia a destreza, a perfeição da tua
realização, mas agora sei que havia outra coisa. Queria dizer-te simplesmente
que havia o teu corpo, mas não chega. Havia outra coisa – que coisa? Mónica,
minha querida. Havia, deixa-me pensar. Ah, poder falar do teu corpo. Perder o
pé da realidade. Fechar à volta uma cortina para que nada de ti me fugisse e
ficar eu só diante de ti. Sinto agora alguém dentro de mim a perguntar e
depois? que é que aconteceu? Sei lá o que aconteceu, quero lá saber. Quero é
estar contigo no nada do tudo o que acontecer. Saturar-me da tua presença. E
ver-te. E ver-te. Que importa o que «acontece»?
(...)E vão sendo horas enfim de descermos
ao rio. Amanhã talvez? Hoje. Um dia. Estará uma noite quente, caminharemos de
mãos dadas. O anjo não virá, que teria lá que fazer? Vamos sós. Não terei medo
da tua presença com toda a sua força de me ajoelhar. Olharei o teu corpo na sua
transparência incorruptível. Sofrerei em mim a descarga do universo e não
gritarei o teu nome. Porque estará em mim e eu hei-de sabê-lo. A areia brilhará
de uma luz pálida, pisá-la-emos devagar a um impulso fortíssimo e lento.
Estaremos nus desde o início, sem vergonha anterior. Nudez primitiva, não a saberemos.
Porque será uma nudez para antes de os deuses nascerem. Então mergulharemos nas
águas do rio e deitar-nos-emos na areia. E olharemos o céu limpo e sem
estrelas. E acharemos perfeitamente natural, porque a iluminação estará em nós.
Erguer-nos-emos por fim e eu baixar-me-ei ao rio e trarei água na concha das
mãos. E derramá-la-ei imensamente devagar sobre a tua cabeça. E direi para toda
a história futura, na eternidade de nós
- Eu te baptizo em nome da Terra, dos
astros e da perfeição.
E tu dirás está bem. » Vergílio Ferreira, in “ Em Nome da Terra”, Quetzal, 10ª edição, 2009
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