A um ti que
inventei
Pensar em ti
é coisa delicada.
É um diluir de tinta espessa e farta
e o passá-lo em finíssima aguada
com um pincel de marta.
É um diluir de tinta espessa e farta
e o passá-lo em finíssima aguada
com um pincel de marta.
Um pesar de
grãos de nada em mínima balança,
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.
Um
desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir.
um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir.
Penso em ti
com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas com o pensar te pudesses partir.
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas com o pensar te pudesses partir.
António
Gedeão,” Máquina de Fogo, 1961, in Poesia Completa de António Gedeão", Edições João Sá da Costa, Lda.
À boca do cântaro
Caminha
sílaba a sílaba
como a fonte
que só pára à
boca do cântaro.
Aí consente
partilhar a água.
À audácia dos
jovens, à timidez
dos que já o
não são, mata a sede.
Aos que
tropeçam na falta
de amor, aos
que mordem as lágrimas
em segredo,
dá a beber.
Leva aos
lábios febris
a frescura da
pedra. Não deixes
o medo
multiplicar as garras.
Sílaba a
sílaba
caminha até
ao cântaro
vazio. – Tão
cheio agora!
Eugénio de
Andrade,in “ Os sulcos da sede”, Quasi Edições
Nocturno
Eram, na rua,
passos de mulher.
Era o meu coração que os soletrava.
Era, na jarra, além do malmequer,
espectral o espinho de uma rosa brava...
Era o meu coração que os soletrava.
Era, na jarra, além do malmequer,
espectral o espinho de uma rosa brava...
Era, no copo,
além do gin, o gelo;
além do gelo, a roda de limão...
Era a mão de ninguém no meu cabelo.
Era a noite mais quente deste verão.
além do gelo, a roda de limão...
Era a mão de ninguém no meu cabelo.
Era a noite mais quente deste verão.
Era no
gira-discos, o Martírio
de São Sebastião, de Debussy...
Era, na jarra, de repente um lírio!
Era a certeza de ficar sem ti.
de São Sebastião, de Debussy...
Era, na jarra, de repente um lírio!
Era a certeza de ficar sem ti.
Era o ladrar
dos cães na vizinhança
era, na sombra, um choro de criança...
era, na sombra, um choro de criança...
David Mourão
Ferreira in «Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa de Eugénio de Andrade", Campo
das Letras - Editores S.A., 7ª Ed. 2002
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