Ruy Belo nasceu em S. João da Ribeira em
1933. Estudou Direito, primeiro na Universidade de Coimbra, depois na
Universidade de Lisboa, onde se diplomou em 1956. Doutorou-se em Direito
Canónico na Universidade de S. Tomás de Aquino, em Roma. Em 1967, concluiu a
licenciatura em Filologia Românica, na Faculdade de Letras de Lisboa .De 1971 a
1977 foi Leitor na Universidade de Madrid. Tal como Jorge de Sena foi forçado a
sair de Portugal porque não arranjou trabalho. Neste país, não houve lugar para
estes dois grandes poetas que foram próximos, amigos. "Portugal não é
pátria, mas país" escreveu Ruy Belo.
Professor,
editor, poeta , jornalista, tradutor, ensaísta, crítico literário, Ruy Belo
morreu subitamente aos 45 anos de idade, em 1978.
O seu nome
ocupa um lugar de excelência na poesia portuguesa da segunda metade do séc. XX.
Poesia que não é militante, elaborada com uma linguagem inovadora e
revolucionária, fora dos cânones do neo-realismo e de qualquer escola. Ruy
Belo viveu muito atento à passagem do tempo, à efemeridade, à inquietação, à
angústia e fez disso poesia, " a minha vida passou para o dicionário
que sou".
Da sua obra
poética fazem parte "Aquele Grande Rio Eufrates" (1961), "O
Problema da Habitação" (1962), "Boca Bilingue"
(1966), "Homem de Palavra(s)" (1969), "Transporte no
Tempo" (1973), " País Possível "(1973), " A
Margem da Alegria" (1974), "Toda a Terra"
(1976),"Despeço-me da Terra da Alegria" (1977).
A Editorial Assírio
& Alvim reuniu a obra Poética de Ruy Belo, publicando-a sob o título de "Todos
os Poemas".
Os
50 anos da obra de "Aquele Grande Rio Eufrates", de Ruy Belo, foram
assinalados, a 3 e 4 de Novembro de 2011, na Fundação Gulbenkian, com o colóquio internacional ” Ruy Belo: Homem de
Palavra(s)”. Desse evento literário demos conhecimento. A poesia de Ruy Belo tem sido uma constante presença neste
espaço.
Revisitá-lo
na XVI edição de “ Sobre a Poesia” é (re)descobrir através
das suas palavras o que pensa da poesia, enquanto poeta.
Breve Programa para uma iniciação ao
Canto
“Ao escrever,
e independentemente do valor do que escrevo, tenho às vezes a vaga consciência
de que contribuo, embora modestamente, para o aperfeiçoamento desta terra onde
um dia nasci para nela morrer um dia para sempre. Dou palavras um pouco como as
árvores dão frutos, embora de uma forma pouco natural e até antinatural
porquanto, sendo como o é a poesia uma forma de cultura, representa uma
alteração, um desvio e até uma violência exercidos sobre a natureza. Mas, ao
escrever, dou à terra, que para mim é tudo, um pouco do que é da terra. Nesse
sentido, escrever é para mim morrer um
pouco, antecipar um regresso definitivo à terra.
Escrevo como
vivo, como amo, destruindo-me. Suicido-me nas palavras. Violento-me. Altero uma
ordem, uma harmonia, uma paz que, mais do que a paz invocada como instrumento
de opressão, mais do que a paz dos cemitérios, é a paz, a harmonia das
repartições públicas, dos desfiles militares, da concórdia doméstica, das
instituições de benemerência. Ao escrever, mato-me e mato. A poesia é um acto
de insubordinação a todos os níveis, desde o nível da linguagem como
instrumento de comunicação, até ao nível do conformismo, da conivência com a
ordem, qualquer ordem estabelecida.
O poeta deve
surpreender-se e surpreender, recusar-se como instituição, fugir da integração,
da reforma que até mesmo pessoas e grupos aparentemente progressivos lhe
começam subtilmente a tentar impor o mais tardar aos trinta anos. Abaixo o
oportunismo, a demagogia, seja a que pretexto for. O poeta deve desconfiar dos
aplausos , do êxito e até passar a abominar o que escreveu logo depois de o ter
escrito. Numa sociedade onde quase todos , pertencentes a quase todos os
sectores, procuram afinal instalar-se o mais cedo possível, permanecer fiéis à
imagem que de si próprios criaram pessoalmente ou por interpostas pessoas, o
poeta denuncia-se e denuncia, introduz a intranquilidade nas consciências , nas
correntes literárias ou ideológicas, na ordem pública, nas organizações
patrióticas ou nas patrióticas organizações.
Escrever é
desconcertar, perturbar e, em certa medida, agredir. Alguém se encarregará de
institucionalizar o escritor , desde os amigos, os conterrâneos, os
companheiros de luta, até todas aquelas pessoas ou coisas que abominou e
combateu. Acabarão por lhe encontrar coerência, evolução harmoniosa,
enquadramento numa tradição. Servir-se-ão
dele, utilizá-lo-ão, homenageá-lo-ão. Sabem que assim o conseguirão calar,
amordaçar, reduzir.
É claro que
falo do poeta e não do poetastro, do industrial e comerciante de poemas, do
promotor da venda das palavras que proferiu. Falo do homem que nunca repousou
sobre o que escreveu, que se recusou a servir-se a si e a servir, que
constantemente se sublevou.
Falo do homem
que, ombro a ombro com os oprimidos, empunhando a palavra como uma enxada ou uma
arma, encontrou ou pelo menos procurou na linguagem um contorno para o silêncio que há no vento,
no mar, nos campos.
O poeta ,
sensível e até mais sensível porventura que os outros homens imolou o coração à
palavra, fugiu da autobiografia, tentou evitar a todo o custo a vida
privada. Ai dele se não desceu à rua, se
não sujou as mãos nos problemas do seu
tempo, mas ai dele também se, sem esperar por uma imortalidade rotundamente incompatível
com a sua condição mortal, não teve sempre os olhos postos no futuro, no dia de
amanhã, quando houver mais justiça, mais beleza sobre esta terra sob a qual
jazerá, finalmente tranquilo, finalmente pacífico, finalmente adormecido,
finalmente senhor e súbdito do silêncio que em vão tentou apreender com palavras , finalmente
disponível não já tanto para o som dos sinos como para o som dos guizos e
chocalhos dos animais que comem a erva
que afinal pôde crescer no solo que ele, apodrecendo, adubou o seu corpo
merecidamente morto e sepultado.”
Ruy Belo, “ Transporte
no Tempo”, in “ Todos os Poemas”,Vol.II, Editora Assírio & Alvim
Enterro sob o Sol
Era a calma
do mar naquele olhar
Ela era semelhante
a uma manhã
Teria a
juventude de um mineral
Passeava por
vezes pelas ruas
e as ruas uma a uma eram reais
Era o cume da
esperança: eternizava
cada uma das
coisas que tocava
Mas hoje é
tudo como um fruto de setembro
ó meu jardim
sujeito à invernia
A aurora da cólera desponta
já não sei da
idade do amor
Só me resta
colher as uvas do castigo
Sou um
alucinado pela sede
Caminho pela
areia dêem-me um
Enterro sob o
sol enterro de água
Ruy Belo, “Monte
Abrão”, in “ Todos os Poemas” Vol.II, Editora Assírio & Alvim
Mas que sei eu
Mas
que sei eu das folhas no outono
ao
vento vorazmente arremessadas
quando
eu passo pelas madrugadas
tal
como passaria qualquer dono?
Eu
sei que é vão o vento e lento o sono
e
acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que
pressinto no meu fundo abandono
Nenhum
súbito súbdito lamenta
a
dor de assim passar que me atormenta
e
me ergue no ar como outra folha
qualquer.
Mas eu que sei destas manhãs?
As
coisas vêm vão e são tão vãs
como
este olhar que ignoro que me olha
Ruy Belo, “Monte
Abrão”, in “ Todos os Poemas” Vol.II, Editora Assírio & Alvim
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