A Ética e o sofrimento na perspectiva da neuro-biologia humana moderna
"A relação entre o cérebro e os desempenhos especificamente humanos foi suspeitada desde a antiguidade clássica, aflora em alguns filósofos como uma verificação de facto, mas é prejudicada pelo total desconhecimento da estrutura e do funcionamento do sistema nervoso central, nesses tempos antigos.
Na cultura hebraica os desempenhos especificamente humanos eram atribuídos a uma acção de Iavé, descrita como uma insuflação nasal, que se distribui por todo o corpo do homem, dando-lhe capacidades que o simples sopro vital não conferia aos outros seres vivos. Ao assinalar esta diferente intervenção de Iavé sobre os seres vivos criados a narrativa bíblica fixa, por escrito, o conceito, já presente durante todo o período mítico-oral, da diferença entre os seres vivos, humanos, e os outros animais. Esta noção encontra-se registada em textos de outros povos da Mesopotânia, contemporâneos da bíblia hebraica, fazendo parte integrante do mito fundacional e da relação entre o ser humano e a transcendência.
David Abram no seu notável e profético livro “The spell of the sensuous”, dá uma rigorosa interpretação dos termos usados na escrita do Génesis, que vou comentar porque nos introduz, directamente, na questão central da minha breve apresentação e que é a da relação entre cérebro e os desempenhos humanos que lhe são específicos.
Diz David Abram que os hebreus tinham a mesma palavra para significar espírito e vento que era a palavra ruach. O carácter primordial de ruach e a sua íntima associação com o divino torna-se evidente logo no início do texto bíblico quando este refere que “antes de serem criados o céu e a terra e tudo estava vazio e escuro, a presença de Deus era assinalada pelo ruach (vento ou espírito) sweeping over the water. A Bíblia em língua portuguesa, dos Frades Capuchinhos, diz “o Espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas” (Gen. 1-2).
David Abram que é um especialista das mitologias dos índios Navajos encontrou nestes o mesmo carácter primordial do ar em movimento. Cito “O vento existia primeiro e quando a Terra começou a existir o Vento tomou-a a seu cuidado”.
Por causa deste duplo valor semântico da palavra ruach, vento e espírito, a respiração é considerada como a mais íntima e elementar forma de ligação entre os humanos e o divino, flui directamente entre Deus e o Homem e é desse fluir que resulta a vida. Mas, ao referir-se ao ser humano, o texto bíblico não usa ruach, que deve entender-se como espírito de vida em geral, mas usa neshamah para significar um aspecto mais pessoal e individualizado do vento, do ar inalado por uma determinada pessoa. Neste sentido neshamah significa a percepção individual ou seja a consciência perceptiva. Recebida de Iavé (Gen. 2-7)
Devo ainda referir que as raízes gregas e latinas das nossas palavras actuais relacionadas com a consciência, como alma, espírito e psique, são todas relativas a sopro, a vento, a ar, a respiração. “Spiritus spirit ut vuld”, o Espírito sopra onde lhe apraz.
Esta noção de que a consciência perceptiva humana é um mistério de origem divina expandiu-se durante séculos pelos países de tradição hebraico–cristã e era algo em que não se devia tocar porque seria entrar no âmago sagrado da relação entre Deus e os homens e, portanto, seria como que um sacrilégio.
Por isso quando Augusto Comte, proclamou, como sequência da sua famosa teoria dos três estados, que “o cérebro segrega o pensamento, como o fígado segrega a bílis” suscitou uma reprovação quase universal.
Acresce que, já no século XIX e depois no século XX, o progresso no conhecimento científico da estrutura e das funções dos nossos outros órgãos permitiu construir uma imagem corporal cientificamente coerente e biologicamente exacta. O cérebro, porem, continuava fechado à investigação como se o mistério da consciência perceptiva inibisse a intervenção da consciência cognitiva.
Foram as descobertas absolutamente seminais de Ramón y Cajal, no plano da morfologia microscópica do cérebro, que permitiram criar um novo paradigma e abrir o cérebro a uma investigação científica, primeiro descritiva, que foi fundamental, e depois morfo-funcional, atingindo na última década, chamada a década do cérebro, um tal volume de artigos científicos publicados que leva a considerar as neuro-ciências como o maior campo de investigação científica moderna.
A mudança de paradigma provocada por Ramón y Cajal, mudança que, mais tarde, Kühn havia de considerar como o verdadeiro motor do progresso científico, resultou da observação de Cajal de que as células que constituíam o cérebro eram células livres que comunicavam entre si por longos prolongamentos interconectados.
Deste novo paradigma morfológico nasceu um novo paradigma funcional: as actividades cerebrais não resultam da acção directa de uma célula ou grupo de células mas sim da rede que entre si todas as células nervosas constituem. Esta nova concepção e o aparecimento de equipamentos, - para além do velho electro-encefalograma que já foi um progresso – de equipamentos que permitiram conhecer, e ver, o tempo e o modo das activações das redes neuronais, constituem, hoje, um vastíssimo acervo de conhecimentos da neuro-fisiologia da percepção sensitiva e sensorial.
E, depois, a descoberta das moléculas químicas que percorrem as redes neuronais, activando-as e desactivando-as, tornou possível intervir sobre o funcionamento cerebral, inibindo-o ou estimulando-o, e compreender o mecanismo de certas alterações comportamentais como o agora tão falado síndroma de hiperactividade infanto-juvenil ou a depressão ligeira.
Mas será que há, já, uma compreensão neuro-biológica do sofrimento?
(…)Então, tudo começa com um estímulo que atinge o sistema perceptivo, sensitivo, sensorial e extra-sensorial – um rosto, um som, um odor, uma palavra, uma picada, um corte, um esmagamento, o frio, o calor, a pressão atmosférica, que sei eu – e que gera uma percepção neuronal, em regra complexa, à qual se segue uma representação: pela emoção, pela consciência da emoção, pela coloração afectiva e pela análise racional.
(…)A palavra dor é simultaneamente o nome da emoção e a designação do sentimento que provoca.
A análise afectiva do sentimento, efectuada pelo que Goleman chama inteligência emocional, e a análise racional, finalmente efectuada pela inteligência reflexiva e simbolizadora, dão uma ampla interpretação ao sentimento dor e preparam-no para ser arquivado na memória consciente como sofrimento, com carga afectiva negativa – isto quando o sentimento não se furtou a ambas as análises e foi aninhar-se, rapidamente, na sub-consciência, porque então tudo pode complicar-se no futuro.(…) Damásio também reconhece que a construção do que chama consciência nuclear tem um suporte neuro-biológico – que é todo o mecanismo da percepção externa ou interna e consequente geração de imagens, sem palavras; mas, ao tentar subir para a compreensão da consciência nuclear, usa a metáfora da cartografia cerebral para dizer que as percepções dos objectos levam à constituição de mapas próprios que interagem com os mapas corporais gerando imagens mentais que pertencem à categoria dos sentimentos.
Para que, em cada ser humano, se manifeste a consciência do mundo objectual e a consciência do eu que conhece, do self, do soi même, afinal da auto-consciência é preciso um cérebro humano normal e progressivamente estimulado desde a vida intra-interina, cérebro que o eu, constituído por um processo que nos é, ainda hoje, totalmente desconhecido, possa usar, gerando, por sua vez, uma realidade virtual a que tenho chamado autobiografia.
Ora é este ser auto-biográfico que tem conteúdos conscientes, memorizados e evocáveis, e conteúdos sub-conscientes, que vai usar a qualidade ética da sua inteligência para defrontar o sofrimento.
A categoria ética da inteligência permite ponderar valores pessoais para decidir. E os valores não são mais que conteúdos da autobiografia de cada um, chamados ao campo da auto-consciência, para que a inteligência emocional e racional os avalie, ponderando a sua carga afectiva e o seu peso heurístico. As percepções ao serem arquivadas como valores, constituem, em cada pessoa, a sua experiência de vida e são estruturantes da autobiografia.
Um faquir indiano que se deita em cima de uma cama de pregos aguçados para poder ganhar o sustento diário, tem dor, por estímulo neuronal, mas não tem sofrimento, por decisão ética, tomada livremente na sua auto-consciência.
(…)Pelo contrário. É possível construir, no campo da auto-consciência, um sofrimento imenso, sem nenhuma dor física, sempre que a ponderação ética dá o primado a valores autobiográficos negativos, destruidores, mesmo catastróficos, conscientes ou que emergiram subitamente da sub-consciência e ocuparam todo o espaço do campo virtual onde tudo, afinal, acontece.
A capacidade ética de lidar com o sofrimento depende, portanto, da experiência de vida de cada um.
As terríveis imagens de sofrimento silencioso das crianças africanas com fome e das mães, de peito seco e sem nada para lhes darem, comparadas com as das crianças que nos bons e caros restaurantes deitam a comida fora, fartas e com a complacência das mães, entretidas com bisbilhotices, dão-me para acreditar que a experiência de vida, a autobiografia, condiciona a resposta ética ao sofrimento pessoal.
E nós, que nos consideramos bem equipados com os valores sociais, os grandes pilares da ética social, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a dos Direitos das Crianças, o que é que somos capazes de fazer pelo sofrimento dos outros?
Esta é, para mim, a pergunta-chave, a pergunta radical num debate sobre ética, sofrimento e vida."
Daniel Serrão,in XIX Encontro de Filosofia – Coimbra, 10 de Fevereiro de 2005
A evolução da Ciência Médica não pode, não deve "beliscar" a dignidade humana, nunca. Daniel Serrão (Professor Universitário)formula uma das mais delicadas questões que a bioética nos coloca: "Que podemos fazer pelos que sofrem?"... O sofrimento humano é inerente à vida. Foi sempre. Continuará a sê-lo, sempre. Um tema demasiado extenso, complexo, problemático e magnânimo para ser comentado em breves linhas. No entanto, como é habitual tratado com mestria, sensibilidade, um certo sentido religioso, e igualmente com muita sabedoria pelo Professor Dr. Daniel Serrão...
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