quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Sobre a Poesia II

Iniciámos, a 19 de Dezembro de 2010, com a publicação de "Poesia e Oralidade " do poeta brasileiro Manoel de Andrade,  um espaço de reflexão sobre POESIA que pretende   divulgar  artigos escritos por poetas que traçam ou reflectem sobre essa arte. Hoje, visitamos um grande poeta português , Eugénio de Andrade .

POÉTICA
Por Eugénio de Andrade

O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo de conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas , curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o seu silêncio, pois esse ser sedento de ser, que é o poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura é uma reconciliação, um suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência.
Essa revelação do poeta, e dos outros com ele, essa descida ao coração da alma, de que Heraclito encontrou a fórmula, essa coragem de mostrar o que achou no caminho – e nunca é fácil, nem alegre, nem irresponsável revelar o que se encontrou ou sonhou nas galerias da alma – é o que chamarei agora dignidade do poeta, e com ele a do homem. Porque é sempre de dignidade que se trata quando alguém dá a ver o que viu, por mais fascinante ou intolerável que seja o achado.
« O futuro do homem é o homem », estamos de acordo. Mas o homem do nosso futuro não nos interessa desfigurado. Este animal triste que nos habita há milhares de anos, cujas possibilidades estamos tão longe de conhecer, é o fruto de uma desfiguração – acção de uma cultura mais interessada em ocultar ao homem do seu rosto do que em trazê-lo, belo e tenebroso, à luz limpa do dia. É contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta amputação no corpo vivo da vida que o poeta se rebela. E se ousa «cantar no suplício» é porque não quer morrer sem se olhar nos seus próprios olhos, e reconhecer-se, e detestar-se, ou amar-se se for caso disso, no que não creio. De Homero a S, Juan de la Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Po a William Blake, de Bashô a Cavafy, a ambição maior de fazer poético foi sempre a mesma : Ecce Homo, parece dizer cada poema. Eis o homem, eis o seu efémero rosto feito de milhares de milhares de rostos, todos eles esplendidamente respirando na terra,  nenhum superior a outro, separados por mil e uma diferenças, unidos por mil e uma coisa comum, semelhantes e distintos, parecidos todos  e contudo cada um deles único, solitário, desamparado. É a tal rosto que cada poeta está religado. A sua rebeldia é em nome dessa fidelidade. Fidelidade ao homem e à sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde mergulha as raízes mais fundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também verdade da alma.
Eugénio de Andrade, in " Afluentes do Silêncio", Editorial Inova Limitada, Dezembro 1970

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