A
pergunta por Deus: uma questão infinita
por
António Borges
“Tem-se
frequentemente a ideia de que, à partida, o ateu, quando nega a existência de
Deus ou quando afirma que, com a morte, acaba tudo, tem do seu lado a razão,
ficando o crente sob a suspeita de não-racional, de tal modo que é a ele apenas
que compete ter de apresentar razões da sua fé.
Ora,
as coisas não são assim, de modo nenhum. Por paradoxal que pareça, também o
ateu assenta a sua negação da existência de Deus ou da vida depois da morte num
acto de fé, melhor, numa crença. “Em qualquer das suas formas, o ateísmo é uma
crença e não uma evidência, escreveu o filósofo Pedro Laín Entralgo, um ‘creio
que Deus não existe’ e não um ‘sei que Deus não existe’.”
O
chamado crente e o ateu encontram-se exactamente no mesmo plano: o crente não
pode demonstrar a existência de Deus, nem a vida eterna, exactamente como o
ateu não pode demonstrar que Deus não existe ou que a morte é o termo
definitivo da existência da pessoa. No que se refere a Deus ou à vida depois da
morte, as posições do crente, do agnóstico ou do ateu assentam na crença.
Evidentemente, sendo humanos e, portanto, racionais, todos - o crente, o
agnóstico, o ateu - têm de apresentar razões para a sua crença, pois esta, se
quiser ser verdadeiramente humana, não pode ser cega. Sublinhe-se, porém, que
se trata, para todos, de um acto de fé, certamente com razões, mas sempre de um
acto de fé, e não da conclusão de uma demonstração.
Assim,
o crente, o agnóstico, o ateu, em vez de se excluírem, devem encontrar-se e
enriquecer-se mutuamente num conflito dialógico de razões, e, por paradoxal que
pareça, num diálogo sincero e aberto, concluirão que há entre eles muito mais
sintonias do que poderiam supor à primeira vista. Quantos crentes, por exemplo,
não ficarão surpreendidos ao ler em Santo Tomás de Aquino que o saber da fé,
não podendo ser evidente, convive com a opinião, a dúvida...
Fé
religiosa e dúvida não se excluem. Pelo contrário, a fé está sempre acompanhada
de perguntas. Estas perguntas humanizam a religião, pois impedem todo o tipo de
fundamentalismo, abrem ao diálogo não só com os crentes de outras religiões,
mas também com os ateus e agnósticos, obrigando a uma reformulação constante
das fórmulas doutrinais, que ao mesmo tempo que tentam dizer o Mistério também
o ocultam. Por outro lado, é bem possível que também ateus e agnósticos aceitem
que há um Mistério inominável que a todos envolve...
Aprofundando
a conhecida diferença entre problema e mistério, estabelecida por Blondel e
sobretudo por Gabriel Marcel, Pedro Laín Entralgo distinguia entre problema,
enigma e mistério.
Problemas
são aquelas questões que, mais tarde ou mais cedo, o Homem pode resolver.
Assim, concluiu-se que a Terra é redonda e que gira à volta do Sol, e pode
encontrar-se solução para uma crise financeira...
O
enigma está referido àquelas questões que nunca serão completamente resolvidas,
mas de cuja solução racional o Homem se vai aproximando cada vez mais, ainda
que apenas assintoticamente.
Enigmas
são, por exemplo, a realidade da matéria ou o pensamento. Hoje, sabemos muito
mais sobre o que é a matéria do que Aristóteles ou mesmo Galileu ou Newton, mas
isso não significa que tenhamos uma intelecção plena ou que algum dia venhamos
a possuí-la. Neste domínio, há um saber cumulativo, mas num horizonte
assintótico, na medida em que, como escreveu H.-G. Gadamer, o horizonte não é
uma fronteira fixa, mas algo para onde viajamos e que ao mesmo tempo se desloca
connosco, de tal modo que o não alcançamos...
Finalmente,
o mistério refere-se a uma realidade na qual se crê, mas cuja intelecção
racional estará para sempre vedada ao Homem. O mistério refere-se às perguntas
últimas, como: Qual o sentido último do universo e da existência? Por que é que
existo precisamente eu? Por que é que há algo e não nada? A vida continua
depois da morte? Deus existe?
Estas
perguntas colocam-nos perante o que é, por si mesmo, misterioso, pois
relacionam-se com a ultimidade, que não é objecto do saber de evidência, mas do
saber de crença. Daí, um dos dramas maiores da existência, pois, como não se
cansava de repetir P. Laín Entralgo, o objecto da ciência é penúltimo, mas o
último é objecto de crença, seguindo-se daí que “o certo é penúltimo e não pode
não ser penúltimo, será sempre penúltimo, e o último é incerto e não pode não
ser incerto, será sempre incerto”.
Mas,
por outro lado, repetindo, a crença, para ser autêntica e verdadeiramente
humana, não pode ser cega, o que significa, portanto, que tem de ser
argumentativa, isto é, tem de dar razões de si mesma. A fé não demonstra, mas
tem de argumentar, de tal modo que mostre que é razoável. As razões que tem a
capacidade e o dever de apresentar têm de mostrar a sua plausibilidade.
Concretamente
quanto à questão de Deus e da vida depois da morte, isto é, com a morte, o
Homem acaba definitivamente ou, pelo contrário, entrará na sua plena realização
na Realidade Última e Primeira a que chamamos Deus? Quanto a esta questão, nem
o não-crente nem o crente podem demonstrar a sua respectiva posição, pois é de
uma crença que, em última análise, se trata. No entanto, um e outro
apresentarão razões a que ambos serão sensíveis. Ser ser humano é levar consigo
esta questão. Melhor: ser esta própria questão. E o que, em última instância,
une os homens é esta procura sem fim e o diálogo à volta desta questão
infinita.”
António Borges, Padre e Professor de
Filosofia, em artigo de Opinião, publicado
no DN, em 11 de Maio de 2024
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